MARIAS DA SÉ Portugal, 2018 Ficção/Documentário, 72’ Será que se poderia afirmar que o filme Marias da Sé existe em si mesmo? ...

Marias da Sé, a identidade que não se deixa quebrar

MARIAS DA SÉ
Portugal, 2018
Ficção/Documentário, 72’


Será que se poderia afirmar que o filme Marias da Sé existe em si mesmo? 
Se o trabalho cinematográfico não precisasse da mão do realizador Filipe Martins, a fim de mostrar os vários pontos de vista dos personagens, através de vários planos de câmara, e não necessitasse de uma extensa planificação, que costuma ser exigível na realização de uma ficção, diríamos, provavelmente, que a linguagem aproximar-se-ia, mais rapidamente, à da clássica documental do que à da ficção. Também porque as histórias da Sé não precisam de registo para existirem. Ainda que a maior parte do elenco seja constituído por não actores, toda a dinâmica do filme pende para a ficção, uma vez que existe uma série de elementos que se assenta numa logística que se aplicaria mais à do género ficcional, por exemplo, a repetição do guarda-roupa que dá a ideia de que tudo foi filmado num só dia. Neste momento, os géneros do cinema entrecruzam-se e os limites de cada género não são delimitados pelas fronteiras, contrariam o modo de fazer de outrora.


Não há espaço para subterfúgios ou para mentir frente à lente. Parecem actores experientes que vivem da representação. Mas não. São apenas autênticos e fiéis à sua história. Por incrível que pareça, os actores de formação, João Reis e Carla Bolito, os turistas na Sé, não convencem o espectador a acreditar na história, a representação plástica apaga a autenticidade que se pretende mais próxima do real; ao contrário dos não actores, que conseguem cativar com naturalidade. A comunidade que vive na Sé, lugar identitário da cidade do Porto, não finge. Cada um vive o dia a dia com os problemas inerentes à própria existência, mas, como qualquer comunidade que se mantém ligada às raízes, não se deixa influenciar pelas alterações externas, actualmente muito forçada pela gentrificação. Ali existe uma noção de entreajuda, cada vez mais escassa nos nossos dias. Actualmente, assiste-se à mudança de uma cidade que perde a sua identidade para dar lugar a quem nunca acompanhou o seu crescimento. Ali as pessoas não entram e saem, ali vivem uma vida inteira.

A Sé não tem cor sem a sua comunidade. No decorrer do filme, vamos percebendo porque esta comunidade local não se perdeu - ainda que estando localizada no meio de tanta confusão -, umas das razões é porque a força que a mantém firme às suas raízes tem género, e é feminino. Podemos dizer que são as mulheres que estão na linha da frente. Elas são de fibra e têm calo. Não precisam de homem algum para subsistirem e são elas que preservam o espírito típico do lugar.

Na narrativa desta longa há sentido de humor, como também há drama que se introduz pela ansiedade daquelas mulheres preocupadas, sobremaneira, com a educação dos seus filhos, ou pela ansiedade de uma senhora de idade quando sabe que tem que ser hospitalizada devido a uma cirurgia. No decorrer da história, o desfecho dá-se quando um Judas de pano é incendiado, uma tradição que ali ganha outro sentido: não há espaço para a traição.

Numa análise mais profunda podemos dizer que Marias da Sé é uma chamada de atenção que defende a tradição de um lugar que se mantém resistente à sua identidade. Esta comunidade não se deixa levar pelas influências externas que adulteram tantos outros lugares; como tem acontecido cada vez mais nas grandes cidades manipuladas pelos seus políticos que privilegiam o mercado turístico sem contenções. O turismo passou a ser prioridade e os seus locais esquecidos, muitas vezes expulsos das suas próprias casas, por causa da ambição dos seus senhorios que se adaptaram, inescrupulosamente, ao mercado imobiliário desregulado.

No Passos Manuel, lugar onde a exibição do documentário aconteceu, inserido no Family Film Project, esteve representada a comunidade da Sé, que continuará fiel às suas tradições.

TEXTO: Priscilla Fontoura 
FILME: Marias da Sé, 2018 
Realizador: Filipe Martins
Imagens: frames do documentário