Self Portrait , 1983, Robert Mapplethorpe Tal como outra expressão artística, há um momento na história da fotografia em que a práti...

Serralves despede-se de Robert Mapplethorpe, o poeta visual

Self Portrait, 1983, Robert Mapplethorpe

Tal como outra expressão artística, há um momento na história da fotografia em que a prática se confronta com a qualificação de arte. São vários os autores que se defrontaram com o dualismo registo/arte. Há quem tenha interpretado a prática fotográfica apenas como registo, e há quem tenha pensado nas várias possibilidades técnicas passíveis de exploração. Até que chega o momento em que a fotografia se desvincula dos laços que a diminuíram face à pintura, essencialmente, por muitos pintores, quando se desligou da representação literal, caminhando, assim, para outras formas de expressão mais abstractas.

Depois da fotografia ter passado por várias fases, sobrepôs-se a questão; em que instância é que a mesma poderia ser incluída nos museus de arte? Susan Sontag, na sua colecção de ensaios, Sobre Fotografia, afirma:
A naturalização da fotografia como arte pelo museu é a vitória conclusiva da campanha de um século travada pelo gosto modernista em favor de uma definição de arte sem fronteiras, uma vez que a fotografia oferecia um campo muito mais conveniente do que a pintura para esse esforço. 

A um Domingo de manhã, o Museu Serralves, no Porto, é visitado por muitas famílias e não apenas. Misturadas nessa multidão estão também crianças, que a dada altura observam as fotografias, algumas controversas, de Mapplethorpe. Há quem aponte para o falo de um modelo de Mapplethorpe e pergunte: "Mãe, isto é mesmo real?".

A educação judaico-cristã influenciou a sociedade ocidental e moldou também o modo de pensar conforme o espírito da época, mas, chegou o momento, nomeadamente o século XIX, em que a academia e o mundo científico se desmembraram da religião vigente para desenvolverem, autonomamente, os mais variados pensamentos e expressões artísticas, onde a ética e a moral deixaram de limitar os temas abordados.

Hoje, dia 9 de Janeiro de 2019, encerra a tão polémica exposição Robert Mapplethorpe: Pictures que reúne 159 obras de toda a carreira e de todas as áreas tratadas pelo autor. Simplificar toda aquela colecção ou o trabalho de Mapplethorpe a meras imagens eróticas, é um julgamento um quanto primário e redutor. Para quem se deixa inebriar por todos aqueles planos - que mostram em jeito de pose aqueles modelos, alguns dos quais com quem Mapplethorpe também se relacionou -, não se pode esquecer que, apesar das imagens circunscreverem-se a um tempo e a um espaço, não se ficam pelo in media res. Há um antes e um depois, uma narrativa que não se prende apenas ao presente. Relações que começaram momentos antes e que terminaram logo a seguir, talvez... Sontag afirmou que "Aquilo que ele procura [...] não é a verdade sobre algo, mas a versão mais forte da verdade sobre algo". E essa verdade é a da Mapplethorpe, é a verdade à qual a estética contemporânea preferiu agarrar-se, em detrimento da noção do belo da época clássica grega. O artista não pode fazer da sua verdade o seu monstro, deve enfrentá-lo de frente. 

Tulip, 1985, Robert Mapplethorpe

Há romantismo nos detalhes que não se identificam no primeiro segundo. Tulipas entrelaçadas criam um poema visual, que não diluem as palavras que correm e ocorrem nas mentes mais dramáticas. Pequenas bolhas na água do vaso de plantas, que para alguns poderá apenas ser um pormenor, mas que numa natureza morta confirma a existência de vida. Há também uma preocupação com a luz e com a composição, um contraste que marca uma organização geométrica entre luz e sombra, uma obsessão pela forma, pelas linhas perpendiculares e pelos corpos esculturais; como se fossem estátuas gregas que atribuem um valor não apenas estético, mas uma proximidade à perfeição natural, quais Apolos. O nova iorquino foi ao encontro de reconhecimento no submundo artístico, Iggy Pop, Susan Sarandon, Deborah Harry, Arnold Schwarzenegger, Andy Warhol, Richard Gere, Philipe Glass & Robert Wilson, William Burroughs, e, claro, a sua musa, Patti Smith com quem teve uma relação ímpar; ela mesma lançou o volume Just Kids, no qual discorre sobre as histórias vividas ao lado do seu grande e verdadeiro amor, amigo e amante Robert Mapplethorpe.

Iggy Pop, 1981, Robert Mapplethorpe

Patti Smith, 1979, Robert Mapplethorpe

White Gauze, 1984, Robert Mapplethorpe

A recriação que faz de Magritte intitulada White Gauze é mais erótica, mas também romântica, dois corpos envolvidos em gaze fundem-se num só. Se calhar a representação mais profunda e densa, própria do amor, sem brutalidade inerente.

Ken Moody and Robert Sherman, 1984, Robert Mapplethorpe

Mapplethorpe fazia retratos à Mapplethorpe, a julgar, o seu trabalho seria facilmente identificado. Onde está o punctum da imagem? Há um falo que se confunde com uma tromba, outro que poderia ser um pedaço de carne pronta a ser cortada na mesa do talhante, alegorias que no campo da psicanálise percorrem o mundo do subconsciente, aparentemente dissociadas umas das outras, mas com valor e significado. O artista viveu nas ruas de Nova Iorque com Patti Smith, enquanto procurava o seu lugar no mundo artístico, a par de uma vida marginalizada pela sua orientação sexual. Nas ruas procurava modelos com quem podia ter relações e também fotografar, tal como o pintor que pinta os seus modelos, não fosse o seu background construído nas belas-artes. O trabalho de Mapplethorpe é voz activa que discursa sobre a camada marginal, alegadamente causadora da dispersão do vírus do HIV nos anos '80. Ainda que sendo um artista controverso, a avaliação do seu trabalho jamais pode ficar apenas retida a uma primeira camada do ver, ou seja, ao erotismo a que lhe está associado. Há romantismo e uma obcecada busca pela poesia, visualmente profunda e complexa. 

Self Portrait, 1988, Robert Mapplethorpe

No auto-retrato em que Mapplethorpe está sentado numa cadeira com uma bengala com punho de caveira, é como que uma despedida que vai ao encontro de outras, como a de David Bowie, com o teledisco Lazarus. Isto é, mesmo sabendo que a morte está perto, não se foge dela. E a cruz, exposta a meio do corredor central de Serralves, é o caminho para quem em todo o seu trabalho buscou a perfeição, melhor dizendo, a redenção.

When I work, and in my art, I hold hands with God., Robert Mapplethorpe

Texto: Priscilla Fontoura
Exposição: Robert Mapplethorpe, Pictures
Curador: João Ribas
Imagens: Robert Mapplethorpe

Local: Serralves, Museu de Arte Contemporânea, Porto
Data: 6 de Janeiro, 2019
Bibliografia: Sobre Fotografia, Susan Sontag; Just Kids, Patti Smith