A música é um dos patrimónios imateriais mais valioso. Faz o coração pulsar e também "tem propriedades terapêuticas"; consegue...

Transmission: programa dedicado a documentários sobre música no Festival Porto/Post/Doc com a estreia de Marianne & Leonard: Words Of Love. Hoje é editado o primeiro álbum póstumo de Leonard Cohen, Thanks for the Dance

A música é um dos patrimónios imateriais mais valioso. Faz o coração pulsar e também "tem propriedades terapêuticas"; consegue salvar a vida em momentos de maior aflição. Assim aconteceu com Mark Lanegan nos anos 80 com o álbum Closer de Joy Division, que o acompanhou enquanto atravessava uma depressão. Por trás das canções existem histórias desconhecidas, muitas criadas a pensar em lugares visitados, nos amores platónicos ou nos amores que se foram. O tema So Long Marianne foi o mote para o desenvolvimento do documentário Marianne & Leonard: Words Of Love, de Nick Broomfield, uma abordagem à história do casal cuja estreia nacional marcará a abertura do Porto/Post/Doc este sábado. Hoje, Sexta-feira, é editado o primeiro álbum póstumo de Leonard Cohen, Thanks for the Dance, produzido pelo seu filho Adam Cohen. Enquanto Bowie deixou Lazarus como testamento, Cohen preparou-se para a morte com temas na gaveta que pensava não conseguir terminar

Cartaz Porto/Post/Doc 2019

O Transmission faz parte de um dos programas do festival Porto/Post/Doc, uma proposta alternativa aos melómanos e aos apreciadores da cultura popular. Nesse sentido, o festival aproveita esta edição para retratar a história contemporânea da música e da política, através de alguns dos maiores compositores, desde o post-Fukushima Sakamato até aos anos 80 dos porteiros da Berlindisco, numa cidade dividida em plena Guerra Fria, indo até às raízes do britpop dos anos 90 com Suede

O festival regressa à invicta entre 23 de Novembro a 1 de Dezembro, em vários espaços da cidade (Teatro Municipal do Porto - Rivoli, Cinema Passos Manuel, Planetário do Porto). O programa estende-se este ano a Braga, com a apresentação de duas sessões no espaço gnration: Quarta, 27 de Novembro, exibição confirmada de Batida de Lisboa, e Quinta, 28 de Novembro, de New Order: Decades.

Marianne & Leonard: Words of Love (2019)

Marianne & Leonard: Words Of Love, de Nick Broomfield
Parece que Leonard Cohen foi muito amado pela sua mãe Marsha Klonitsky de origem asquenaze. Antes de se dedicar aos palcos, o songwriter tentou a sua carreira na escrita, mas pouco tempo depois revelou-se uma experiência falhada. O seu livro foi rejeitado, levando o canadiano a um esgotamento. De costas viradas à literatura foi na música que tentou a sua sorte. As letras foram o leme para comandar os acordes simples do folk norte-americano. Marianne foi a primeira e (talvez) a última musa de Cohen, aquela que representa a hesitação e insegurança existencial que o assombraram toda a vida. 


Acerca da relação amorosa intermitente que Cohen teve com Marianne Ihlen durante os anos sessenta.
O documentário Marianne & Leonard: Words Of Love retrata a história de amor de dois idealistas que viram na arte a ascensão para outro mundo. Tal como é referido no documentário, "os poetas, artistas ou cineastas não fazem maridos esplêndidos; a ironia é que este tipo de homens são os que as mulheres almejam." Ainda que o coração de Marianne fosse vulnerável, fazendo-a cair nas mãos dos artistas que iam parar à ilha grega Hidra (lugar onde se refugiava e onde começou a história de amor do casal), é a relação do casal que nos leva a compreender a obra coheniana

No início foi Marianne, mãe solteira, quem apoiou financeiramente Cohen, enquanto tentava o seu lugar no mundo da literatura. Mas foi o tema So Long Marianne que o levou ao êxito da sua carreira. Ao longo do documentário as vozes de Cohen e de Marianne narram memórias, recorrendo às cartas trocadas pelo casal quando se encontravam separados geograficamente.

Marianne & Leonard: Words of Love (2019)

O documentário é pintado por pequenos separadores onde são exibidas imagens da norueguesa na costa da ilha grega, como se figurasse quadros de pintura impressionista. Após várias tentativas de aproximação e reconciliação, a relação do casal acabou por se desmoronar, devido, acima de tudo, à tendência "mulherenga" de Cohen. Parece que o músico nunca se reconciliou consigo mesmo, estabelecia relações contraditórias das quais fugia e às quais regressava; conviveu uma vida inteira com os fantasmas da indefinição e da incerteza. 
Um homem nostálgico que viveu de fragmentos e que fugia constantemente à âncora do compromisso. Após algumas depressões e várias tentativas de busca da espiritualidade, Cohen mais tarde procurou na meditação budista a cura para o seu estado. No fundo, o documentário é um espelho universal que reflecte o nosso Eu mais vulnerável.

Design: Sérgio Couto

Black Bombaim, Viagem-Mundo, realizado por Miguel Figueiras, argumento de Manuel Neto, com a participação de Jonathan Saldanha, Luís Fernandes, Pedro Augusto, uma colaboração que se coloca como eixo a 360º
O registo do som ao vivo é um documento importante que perdurará no arquivo da música. Em Viagem-Mundo dá-se uma aliança com três compositores diferentes, cujas identidades colocam a composição e o cruzamento de cada um num lugar diferente, Jonathan Saldanha, Luís Fernandes e Pedro Augusto. A exploração sonora presente ao longo do documentário divide-se em três linhas evolutivas que se distinguem e complementam o conceito presente no álbum: uma viagem que parte do Real (Pedro Augusto), passando pela Ruína e Memória (Luís Fernandes) para terminar no Espaço Sideral (Jonathan Saldanha). Um caminho que segue diferentes direcções, partindo do real para uma ficção sonora, do processo electro-acústico para outra dimensão mais plástica e industrial. Esta viagem incerta deixa-se levar pela característica mais evidente desta banda de rock psicadélico, a improvisação e a exploração.

Os concertos assumem ou anulam as propriedades do local. No caso de Jonathan Saldanha o espaço dá relevância ao factor sideral, como se aquilo que está a ser visto fosse mais uma degustação sonora do que visual. Jonathan Saldanha pretende "dialogar com os fantasmas do espaço", como se além daquela dimensão existisse um espectro, se visto a ultra violeta um submundo desconhecido apareceria, habitado por fantasmas que reagem por activação, estabelecendo assim uma relação multi-dimensional. O som com características mais industrializadas assume o lugar como complemento à estética sonora. Todas as performances foram pensadas essencialmente na evidência ou anulação das particularidades do espaço. Viagem-Mundo é um documentário sobre a colaboração de três músicos que se colocam como eixo no acto de criação dos Black Bombaim

Porto/Posto/Doc - Transmission - 2019
À sexta edição o festival abre-se à multiplicidade das entidades, a todos os tempos dos filmes: longas, médias e curtas-metragens, documentários, ficções, competições várias e animações (entre eles O Filme do Bruno Aleixo, de João Moreira e Pedro Santo). Ao longo da semana será possível ver ainda os documentários Batida de Lisboa, de Rita Maia e Vasco Viana, documentário rodado nos subúrbios da capital e que procura dar a conhecer músicos e produtores de diferentes origens – de Angola a São Tomé, de Cabo Verde a Guiné Bissau –, bem como as suas batalhas identitárias. Haut Les Filles, de François Armanet, um filme que se debruça sobre as figuras femininas da música rock francesa, incluem-se as participações de Charlotte Gainsbourg, Françoise Hardy, Vanessa Paradis e muitas mais; Berlin Bouncer, de David Dietl, uma viagem pela cultura clubbing da cidade através das histórias de três seguranças de algumas das mais famosas discotecas da capital alemã; Ryuichi Sakamoto: Coda, realizado por Stephen Nomura Schible, sobre o compositor japonês. Hansa Studios: By The Wall 1976-90, Mike Christie sobre os anos dourados de um dos mais conhecidos estúdios de gravação da cidade de Berlim, e ainda New Order: Decades e Suede: The Insatiable Ones, sobre as bandas homónimas. Um Punk Chamado Ribas, de Paulo Miguel Antunes, Punk's Not Dread, de Tiago Afonso, ambos sobre duas das figuras mais carismáticas da cena punk portuguesa: João Ribas (Censurados, Tara Perdida) e Punkito.

Cada vez mais, o Porto torna-se uma cidade culturalmente vibrante, com uma oferta capaz de responder a nichos que procuram alternativas às grandes produções. No âmbito do Transmission, o festival conta também com concertos ao vivo em parceria com a produtora musical Lovers & Lollypops. Este ano com os Sereias (banda que há pouco lançou "O País a Arder"), mas também com as imagens documentais que nos trazem a cidade do Porto durante os acontecimentos do PREC, em 1975, realizadas por José Alves de Sousa.

Texto: Priscilla Fontoura
Porto/Post/Doc: 23 de Novembro a 1 de Dezembro