Quando se trabalha um imaginário, pensar num ou mais médiums é premente para colocar a mão na massa e começar a construir uma casa que se qu...

Mary Ocher volta a Portugal numa altura em que se anseia uma corrida para a luz


Quando se trabalha um imaginário, pensar num ou mais médiums é premente para colocar a mão na massa e começar a construir uma casa que se quer assente na rocha e não na areia.

Mary Ocher, originalmente Mariya Ocheretianskaya, já passou por Portugal algumas vezes. Ficou na memória o seu concerto intimista na Associação Sonoscopia, que aconteceu em Maio de 2017, com pessoas sentadas no chão, nas cadeiras para crianças, ou encostadas às paredes da sala para ouvirem temas que percorreram o folk tradicional e o garage dos anos 60. Um concerto despido de artifícios e de vaidade, gradual e naturalmente a comunicação desejada entre Mary e quem a ouviu foi sendo criada. Foi ali que se assistiu a vangardista multifacetada, quase numa postura provocatória, a pintar o seu mundo muito próprio com vozes etéreas e sintetizadores abstractos, com guitarras e outros instrumentos, como se visitasse locais com a sua casa de música ambulante.

Mary Ocher nasceu na Rússia, e podemo-la considerar uma resistente que combate ideias extremistas através das suas letras, ensaios escritos, filmes; a título de exemplo surge "War Songs" — um álbum que contempla 13 temas apocalípticos sobre guerra, crime e temas relacionados. Assuntos que têm vindo a ser tratados ao longo dos seus quatro álbuns, da antologia de gravações caseiras, dos dois ep’s e das duas colectâneas de remisturas. 

Descendente de pais judeus ucranianos, viveu em Tel Aviv e em Berlim. Agora de volta a Portugal, Mary Ocher quebra (no bom sentido) as regras de confinamento para dar um concerto que se espera inolvidável, no âmbito do evento Cultura em Expansão, que terá lugar na Associação de Moradores da Bouça.


Olá, Mary, como tens vivido este cenário pandémico?
Olá! Tento estar sempre ocupada em vez de estar preocupada. Tenho dois novos discos para lançar, não posso planear o lançamento deles, nem planear digressões, não sei quanto tempo é que isto vai durar mas estamos nisto juntos. De momento, é melhor contar as nossas bênçãos do que preocuparmo-nos com o futuro. 

Eu acho que o artista deve sentir-se livre para trabalhar o que entender, não temos deveres nem responsabilidades. De certa forma, acaba por ser uma prática um pouco anti-social, no caso do trabalho já não ser apelativo para uma audiência (ou mesmo, para a sociedade).


Como te introduzes ao trabalho do grande mentor Robbie Basho. A versão que fazes da Crystal Fire conta com a participação de Julia Kent e admita-se que é igualmente uma versão arrepiante.
Obrigada. Há uns anos, uma pessoa falou-me da música do Basho depois de um concerto em Hamburgo, essa pessoa pensava que eu já conhecia o trabalho dele, mas para mim foi algo novo. A versão está muito longe do original, espero que quem a ouça e que quem ainda não conheça o trabalho dele, se sinta predisposto para descobrir e explorar a música dele. 

Ainda bem que o folk não morreu. Tal como tu, existem músicos a reavivar o folk mais primitivo. Neste tempo em que tudo está uma confusão e em que somos distraídos por uma quantidade de poluição visual, sonora, massificação de opiniões, achas que o folk, enquanto género mais despido de artifícios, transporta-nos à pureza dos sentidos, devolvendo uma espécie de orientação mais organizada para um pensamento mais consciente e contemplativo – uma direcção para o ócio?
Não faço ideia, não estou focada no folk ou na música acústica em particular, mas concordo que tem uma qualidade intemporal quando é bem feita. 


És descendente de judeus, cresceste em Tel Aviv, como olhas para a ascensão de pessoas associadas à extrema direita na Europa?
Talvez, a maior parte das pessoas não foi perseguida ou sofreu discriminação e são incapazes de compreender quem passou e passa por isso... apesar de haver pessoas que o experienciaram e ainda assim perseguem outras, como o estado de Israel, por exemplo. Eu cresci com um sentimento exacerbado de ódio e xenofobia que era ensinado na escola e estava presente no dia a dia. É assustador ver que até a Alemanha, o país para o qual me mudei quando tinha 20 anos (porque não suportava viver onde cresci), até esse país que tinha internacionalizado uma espécie de vergonha nacionalista (o oposto de nacionalismo) está a juntar-se ao resto, com acessos de intolerância racial e cultural. 

- Nem todos sabem como nasce a ideia de Kibbutz(im), colectivos presentes em todo Israel. Achas que o mundo seria um lugar melhor se realmente houvesse uma entre-ajuda comunitária e igualitária?
Os meus pais escaparam do regime soviético um pouco antes do seu colapso. Como a maior parte dos soviéticos, acabaram por ressentir o regime, mas de uma forma cuidadosa e muito privada, nunca foram abertamente opostos a ele. Tenho vivido em comunidades durante a minha vida adulta, o que pode criar a sensação de que nunca se está sozinha, mas em tempos como estes apercebemo-nos que essas pessoas não são mesmo família e que viver com muitas pessoas é bastante arriscado. Não é para toda a gente e quanto mais envelhecemos, mais nos habituamos a certas coisas e menos receptivos estamos a outras coisas.

Estou muito desiludida com algumas tendências de esquerda e as suas políticas, entre as quais (como a auto-censura, o politicamente correcto...), estamos a ficar dogmáticos, pouco reflexivos e superficiais. 



No ensaio "The West Against the People" afirmas: I do believe there is a hierarchy of discriminations, referes-te às várias camadas da discriminação, comparas a mulher branca que tem sofrido várias retaliações no trabalho, na sociedade, e que lida com vários tipos de violência, desde na sua casa e no trabalho, à negra que, além de também sofrer as discriminações referidas, sofre também a da exclusão racial. Será importante parar de distinguir os vários tipos de discriminação e pensar que ser discriminatório é apenas parvo e ignorante e tratar o problema no seu todo?
A política da moda da identidade dos anos recentes tem criado uma divisão tão grande entre comunidades, em vez de haver união para atingir uma meta, andamos a puxar cada um para o seu lado, a tentar provar que sofremos mais, para quê? Para terem pena de nós? Para ter mais motivação? Não deveríamos antes apoiar-nos uns aos outros em vez de nos virarmos uns contra os outros e criar ainda mais divisão? Estou muito desiludida com algumas tendências de esquerda e as suas políticas, entre as quais (como a auto-censura, o politicamente correcto...), estamos a ficar dogmáticos, pouco reflexivos e superficiais. 
          

As tuas líricas são conscientes e trabalha-as como poemas juntando um tom spoken word, não só fazes o ouvinte imergir no teu mundo sónico, mas, também, através das letras, mexes de uma forma directa e activista as mentes mais preguiçosas. Consideras que o papel maior de um artista é despertar as pessoas para os problemas do espírito da época?
Eu acho que o artista deve sentir-se livre para trabalhar o que entender, não temos deveres nem responsabilidades. De certa forma, acaba por ser uma prática um pouco anti-social, no caso do trabalho já não ser apelativo para uma audiência (ou mesmo, para a sociedade).

Mary, como olhas para o futuro a partir daqui?
Ficção científica, talvez algo entre a paranóia do Black Mirror e o optimismo de Ray Kurzweil no In the Age of Spiritual Machines. 

Texto: Priscilla Fontoura
Entrevistada: Mary Ocher
Tradução: Cláudia Zafre
Imagens: © Mary Ocher