quinta-feira, 24 de outubro de 2019

A necessidade aguça o engenho: resiliência e 10 anos de Mucho Flow, o festival que dá destaque às bandas emergentes

Imagem: Priscilla Fontoura












Como qualquer adolescente sedento por música e pelas curiosidades de um “mundo novo”, Bruno Abreu — então vocalista da banda vimaranense Blindfold — enveredou também por esse caminho, ora agreste, ora sedutor, da arte imaterial que é a música. Começou a transpirar nas salas de ensaio e acabou por suar num festival que ele próprio organizou. Um idealista é mesmo assim: por mais que a vida, em certo momento, traga alguma consciência da realidade, a vontade de pôr em prática projetos recalcados acaba por regressar.

Os tópicos surgem numa conversa informal. Partilhei palcos e aventuras musicais com o Bruno, por isso não há como forçar uma conversa que flui naturalmente.

Há mais de 20 anos — numa época em que a internet era apenas uma criança em crescimento — organizar concertos era um verdadeiro bicho de sete cabeças: uma aventura sem GPS, especialmente quando os espectáculos aconteciam perto das estradas nacionais. Era realmente um tempo diferente, mas, de certa forma, igual — talvez — na autenticidade energética própria da adolescência: a de fazer, e fazer cada vez mais, sem pensar nos entraves.

De músico e melómano a promotor, foi entre fases de aproximação e afastamento da música que nasceu a vontade de criar uma promotora, capaz de responder a novas exigências culturais. E isso aconteceu na cidade onde dizem ter nascido Portugal, onde Bruno também nasceu e onde acontece o Mucho Flow.

De músico/melómano a promotor, foi entre fases de aproximação e distanciamento da música que a vontade de criar uma promotora, pronta a responder a outras exigências culturais, se realizou; na cidade onde dizem ter nascido Portugal, onde Bruno nasceu e onde, também, acontece o Mucho FlowA promotora Revolve celebra 10 anos — uma década que será assinalada na sétima edição do festival Mucho Flow, nos dias 1 e 2 de novembro.

A edição deste ano rompe com os moldes anteriores: o festival sai do CAAA (Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura) e ocupa três novos espaços da cidade, com 21 artistas distribuídos por esses locais.

"Guimarães tinha e sempre teve uma zona histórica com muitos bares e muita gente, mas não havia propriamente um sítio, uma sala preparada para concertos, então começámos a pensar nisso e decidimos improvisar.”


Imagem: Emanuel R. Marques

















Um pouco cansados de viajar pelas grandes cidades para ver concertos, Bruno Abreu e Miguel de Oliveira — o seu braço direito na promotora Revolve e, na altura, guitarrista dos Blindfold — concluíram que também seria possível levar bandas à sua cidade, para atrair um nicho do qual sentiam (e sentem) fazer parte.

Algumas promotoras, como a Lovers & Lollypops, foram uma ajuda importante no começo da Revolve.

“Nós, na altura, tínhamos essa vontade de fazer algo novo. Já havia alguém a fazer também, sem meios, a tentar abrir caminho e fazer aqui. Entretanto, também fomos conhecendo algumas pessoas que foram muito importantes no nosso início.


A Lovers foi quem nos ajudou no nosso primeiro concerto com os White Hills e os Black Bombaim em Guimarães. Fomos criando uma relação de amizade com eles.


Percebia-se que era difícil, mas que era possível fazer uma coisa do género — principalmente quando Guimarães não tinha nada. Era uma cidade com tanto potencial, tinha tantos espaços... achávamos nós; completamente iludidos.


Por isso, ver a Lovers a tentar fazer coisas aqui, ou malta que também fazia na altura em Lisboa, achávamos que fazia sentido tentarmos produzir alguma coisa em Guimarães.


Porque não havia nada. Havia o Centro Cultural Vila Flor, que eventualmente poderia promover um ou outro concerto, mas para alguém que gostava de ver um determinado tipo de música alternativa — e outros géneros que nem sequer consigo catalogar — não havia nada.


Guimarães tinha e sempre teve uma zona histórica com muitos bares e muita gente, mas não havia propriamente um sítio, uma sala preparada para concertos. Então começámos a pensar nisso e decidimos improvisar”, afirma Bruno.


UM ANTES E UM DEPOIS


Em 2012, quando Guimarães foi Capital Europeia da Cultura, dá-se a reviravolta — e com ela, o boom da Revolve.


No início, a comunidade mais jovem da movida vimarense saía primeiro para socializar com os amigos e só aparecia nos concertos por volta das três da manhã. Bruno e Miguel não sabiam bem no que se estavam a meter, porque nem sequer havia condições para organizar concertos. A cidade não estava preparada, e a comunidade não estava educada para uma proposta cultural alternativa às convencionais. Começar foi uma experiência assustadora.

“Eu lembro-me dos primeiros concertos com TV Buddhas e Glockenwise a abrir, e dos TV Buddhas começarem a tocar às 4:00 da manhã.
Os TV Buddhas nem sequer ficaram lá — foram para o hotel dormir, meteram o despertador para acordarem às 2h e apareceram lá para tocar”,
recorda Bruno.

 

Foi nesse momento que decidiram bater o pé e mudar os costumes, sem se ajustarem às vontades do público. A partir daí, os concertos passaram a começar mais cedo, pelas 22h ou 23h — mesmo que estivessem apenas 10 ou 20 pessoas. Essas, muito provavelmente, seriam as que realmente lá estavam para ver as bandas.


Aos poucos, começaram a ter mais público nos concertos. Entre 2011 e 2012 houve um hiato, motivado pela falta de apoio público e privado. Qualquer custo teria de ser suportado pelos próprios organizadores. Ainda assim, em 2011, organizaram — em parceria com a Lovers — um concerto dos noruegueses Ulver na Casa da Música.


Apesar de alguns episódios menos felizes, parar nunca foi uma hipótese. Tinham consciência de que o caminho teria de ser trilhado com dificuldades, e que um passo de fé iria, provavelmente, "compensar todas as outras alturas em que correu mal”, diz Bruno.


"A necessidade aguça o engenho. E nós, como trabalhamos com orçamentos tão curtos — por exemplo, o Mucho Flow é realizado com o apoio do município, mas não é, de todo, o orçamento com que gostaríamos de trabalhar — este ano é uma loucura aquilo que nós estamos a fazer.

Quando não tens, às vezes fazes mais. Então tentas, procuras e tentas apanhar aquela banda no momento em que está prestes a dar o salto e, felizmente, nós temos a sorte de conseguir algumas vezes."


Imagem: Emanuel R. Marques


Editar ideias é um processo moroso. Tudo parece valer. Quer-se tudo colossal. Pensa-se que tudo é possível. Mas a ideia de acolher bandas num só dia era especialmente atraente. Daí surgiu o conceito de criar um mini-festival.

Em 2012, dá-se a mudança: a Revolve, em parceria com a Lovers & Lollypops, organizou dois eventos com apoio público da Guimarães Capital Europeia da Cultura, sendo que um deles integrou o programa oficial.


Em 2013, um desses eventos transitou para o ano seguinte, agora em parceria com a associação vimaranense Convívio, sob o nome Indiesciplinas. A Revolve ficou responsável pela curadoria artística e pela produção.


Nesse mesmo ano, a equipa cresceu. Juntaram-se mais duas pessoas e começaram a organizar eventos com maior regularidade.


MUCHO FLOW, UM FESTIVAL QUE CONTINUA PELA FORÇA DA RESILIÊNCIA DA REVOLVE


Apesar de trabalharem com orçamentos curtos, este ano apostam numa estrutura mais intensiva. Bruno reforça:

“A necessidade aguça o engenho. E nós, como trabalhamos com orçamentos tão curtos — por exemplo, o Mucho Flow é realizado com o apoio do município, mas não é, de todo, o orçamento com que gostaríamos de trabalhar — este ano é uma loucura aquilo que nós estamos a fazer.

Quando não tens, às vezes fazes mais. Então tentas, procuras e tentas apanhar aquela banda no momento em que está prestes a dar o salto e, felizmente, nós temos a sorte de conseguir algumas vezes.

Amen Dunes, Circuit des Yeux — que já tinha tocado cá antes, mas já nesse primeiro concerto também já esteve prestes a ser um concerto nosso, só que depois não tivemos a oportunidade de o fazer — os próprios Girl Band...

Tivemos uma sorte tremenda em termos apanhado certas bandas naquele momento antes de explodirem.

É aquela fome de quem gosta muito de música, não é? Sinto essa necessidade de estar sempre à procura de música nova.”

 

Sobre o formato da edição de 2025, partilha:


"Já há muito que queríamos fazer neste formato. Já desde 2016 que andávamos a discutir com a própria Câmara fazer noutros locais, tornar o festival mais itinerante, ter dois dias. Este ano juntámos o festival ao aniversário dos 10 anos de Revolve."


Imagem: Emanuel R. Marques


Sempre atentos a bandas emergentes com as quais se identificam, e suportados na ética de “fazer muito para um nicho ecléctico”, a Revolve aposta este ano num formato itinerante.

“Este ano sentimos que estamos a dar tudo. O ano passado correu muito bem, mas sentimos que o festival se tinha esgotado. Aquilo que nós tínhamos para fazer, naquele formato, naquele sítio, estava feito. 

O próprio Mucho Flow tinha começado com uma coisa diferente daquela. O festival aparece porque, em 2013, nós fizemos o tal ciclo Convívio, no contexto Guimarães Capital da Cultura — o Indiesciplinas — e achámos que, com o dinheiro que conseguimos da produção daquele evento, poderíamos gastá-lo todo e fazer um festival. 

E, na altura, lá está: íamos apanhar uma banda que estava aí quase a explodir e fechámo-la. Entretanto pensámos: vamos fechar mais duas ou três bandas e fazemos disto um festival. Fechámos mais umas quantas, a banda cabeça de cartaz cancelou e obrigou-nos mesmo a fazer dessas confirmações um festival.

Fizemos o Mucho Flow, mas foi de graça, na rua — onde hoje em dia fazemos o Vai-m’à Banda, que é outro evento nosso. Por isso, no ano seguinte percebemos: se queremos fazer isto, já vamos ter que fazer noutro formato. E passámos para o CAAA.

No ano passado sentimos que se tinha esgotado. Se ficássemos lá este ano, seria mais do mesmo. Já há muito que queríamos fazer neste formato. Desde 2016 que andávamos a discutir com a Câmara fazer noutros locais, tornar o festival mais itinerante, ter dois dias. Este ano juntámos o festival ao aniversário dos 10 anos da Revolve.” 

A ideia de tornar o festival itinerante existe e perdura desde o início da criação da Revolve. Tal como o próprio nome da promotora indica, o propósito sempre foi revolver a cidade — criar um elo entre o espaço urbano e aquilo que se pretende programar, levando o público a circular por Guimarães e, ao mesmo tempo, trazendo “o turismo certo” para a audiência.

“Na realidade, o turismo não se torna assim tão visível no reflexo da vida da malta jovem. Digo isto porque acho que faria sentido — como ponto de contacto — uma nova geração conhecer Guimarães, mas não fazemos isto a pensar dessa forma. Uma coisa que gostava mesmo era de poder incluir ao máximo a cidade e os miúdos.”

Este ano, um dos locais ocupados pelo Mucho Flow será um dos andares do antigo edifício dos CTT — um espaço que já fazia parte do imaginário da cidade:

“Toda a vida vivemos com aquele espaço a fazer parte dos nossos dias. E agora vamos ocupar aquilo.” 

A parceria com a Câmara foi este ano alargada também ao apoio logístico, o que permitirá a produção distribuída pelos três novos espaços.

A equipa é composta por oito pessoas. Bruno Abreu é o mais sonhador — acredita que tudo é possível: mais bandas, mais sítios, mais dias. Miguel de Oliveira e os restantes membros da equipa são quem trazem as ideias de Bruno à terra, adequando-as aos orçamentos disponíveis.

Este ano apostam em nomes como Iceage, banda que regressa a Portugal e que já queriam trazer há algum tempo, Croation Amor e Amenia Scanner, nomes que seguem desde 2016.

“Este ano foi um bocado uma mistura disso: dos emergentes ou daqueles artistas que achamos que se distinguem, com esses artistas que já seguimos há algum tempo. Por isso, de certa forma, este ano tem esse aspecto. E eu, sinceramente, também acho que se calhar será esse o caminho, porque nós não conseguimos fazer um festival a pensar em grandes massas — fazermos um festival, por exemplo, para 5000 pessoas, não é esse o nosso objetivo.”

Apesar da aposta mais ousada, não colocam de parte regressar às parcerias, como no passado com a produtora Bando à Parte. No entanto, este ano, com tanta novidade em jogo, seria demais para o formato planeado.


Imagem: Emanuel R. Marques















DE FÃ A ORGANIZADOR
Ver concertos enquanto organizador não é o mesmo que ver enquanto fã — há uma lista de responsabilidades a ter em conta, e o cérebro não consegue relaxar enquanto o evento acontece. Bruno partilha:

“Sinto sempre aquele peso e aquela necessidade de estar preocupado com a parte da organização. A qualquer momento, alguma coisa pode ser necessária da minha parte. Por exemplo, Black Midi: vi meio concerto porque fui com o baixista de Fire! para o hospital. O baixista de Fire! tropeçou ao entrar em palco. Ficou o concerto todo a tocar como se estivesse normal. No fim, eu ainda comentei que o concerto tinha sido muito bom, e ele disse: ‘Leva-me ao hospital, por favor.’”

Os olhos verdes do organizador brilham, e a nostalgia sente-se enquanto se vão trocando palavras, remetendo tanto para um passado já distante (mais de vinte anos) quanto para este presente. De músico a organizador, tudo faz parte para quem gosta de se sentir preenchido por esta arte tão especial e completa.

Polaroid: Emanuel R. Marques 

O Acordes pediu a Bagagem dos concertos memoráveis Mucho Flow, escolhidos por Bruno AbreuAmen Dunes, Circuit Des Yeux, Girl Band, Black Midi, Cave.

Imagem: Emanuel R. Marques

Entrevista e Texto: Priscilla Fontoura
Imagens: Emanuel R. Marques, Priscilla Fontoura
Links:
http://rvlv.net
http://muchoflow.net