terça-feira, 24 de março de 2020

Breaking the fourth wall: Nostalgia da Luz (2010)

Olha agora para o céu, e conta as estrelas, se as podes contar.
- Génesis 15:5 -

Os astrónomos olham para o céu e tentam contar as estrelas. De facto, contar todos estes corpos celestes é impossível. O que está além da via láctea continua a ser uma incógnita, há uma imensidão por descobrir, não obstante as explorações aeroespaciais que vários cientistas têm realizado e a informação que se tem adquirido graças à observação dos astros. No entanto, há sempre a questão que nos assalta, se calhar não só durante a infância mas durante toda a vida: como viemos e qual o sentido da vida?



Nostalgia da Luz (2010) é um documentário bem temperado e um trabalho refinado, construído com tempo e inteligência. Não dá a conhecer o assunto de imediato, pois a viagem que se faz liga o ponto de partida (geral) ao ponto de chegada (particular) sem que todo o conteúdo seja desvendado de uma só vez. Começa com o mistério existencial para dar a conhecer o peso que a ditadura liderada por Pinochet deixou iniciada na década de 70 do século passado -, e cujo momento histórico não sucumbiu ao tempo presente. Mulheres viúvas ou mulheres que perderam entes queridos pisam ainda hoje o vasto deserto de Atacama, região no norte do Chile até a fronteira do Peru, para encontrarem os restos mortais de quem foi morto sem qualquer dignidade. 


Um dos astrónomos presentes no documentário afirma que as pessoas compreendem mais os profissionais que estudam o passado para descobrir o futuro, do que a dor destas mulheres que não têm nem sabem onde se encontram os corpos dos entes queridos; estas mulheres que ainda vivem à custa dessa força e dessa vontade. Ao longo das suas existências procuram apenas enterrar quem amam. O astrónomo diz que é muito mais legitimo compreender estas mulheres, que carregam o sofrimento de um passado que conheceram, do que chegar a conclusões definidas sobre o cosmos. Mas o que acontece é o oposto. Lidamos continuamente com o passado e estamos sempre no passado, a luz do sol demora a chegar à terra 8 minutos e da lua pouco mais de um segundo. O único presente que temos é o nosso pensamento, é o mais próximo que chega do presente absoluto. Tudo acontece no passado por milionésimos de segundos em relação ao tempo do relógio. A luz de uma câmara ou de uma pessoa demora a chegar uma fracção de segundo. Ainda que uma das maiores curiosidades do homem seja contemplar o alto e descobrir a origem do universo, aqui perto, na própria terra, há muito a ser descoberto, e essa temática é muito bem suportada na narrativa que Guzmán delineia para Nostalgia da Luz


Nostalgia da Luz é uma das maiores obras do realizador chileno Patricio Guzmán, que com toda a delicadeza e profundidade nos leva a visitar lugares áridos ao som da sua voz reflexiva e saudosista, encaminhando-nos também às memórias da sua infância. Este documentário poético leva-nos a questionar o sentido da vida, não apenas o mais filosófico da existência, mas também o do sofrimento e o da dignidade humana. 

Texto: Priscilla Fontoura
Documentário: Nostalgia da Luz, Patricio Guzman, 2010
Frames: Documentário Nostalgia da Luz (2010)