segunda-feira, 20 de março de 2023

Breaking the Fourth Wall: Women Talking (2022)


A narrativa do filme Women Talking de Sarah Polley (2022) inspira-se nos relatos verídicos ocorridos na comunidade menonita em Manitoba, na Bolívia, por influência do romance que leva o mesmo nome (2018), escrito pela canadiana Miriam Towes. São mulheres em sintonia e união a ajudarem outras mulheres que carregam a necessidade urgente de declarar ao mundo os actos dramáticos cometidos contra as suas vidas, as suas gerações e os seus futuros. Há que sublinhar que também existem (na vida real) as que escavam mais a fundo o poço para a queda de outras mulheres, causando dano aos seus futuros sem demonstrar a mínima empatia.

Entre 2005 e 2009, mais de 100 meninas e mulheres foram violadas nas camas das suas casas. As notícias relataram que a mais nova teria 3 anos e a mais idosa 65 anos. Ao depararem-se com o cenário dantesco do sangue que lhes escorria entre as pernas, como as dores que sentiam no corpo pela força cometida durante a prática de violência sexual aquando do sono, continuaram na dúvida por terem sido vítimas forçadas a adormecer com anestesia a viver num cenário de alienação social. Tragicamente, todos aqueles actos horríveis cometidos colectivamente foram provados. Alguns homens da comunidade de Manitoba usavam sprays anestésicos para entorpecer aquele grupo de mulheres e violá-las durante o sono, tais sprays eram utilizados para sedar cavalos e vacas.

Nas ruas de terra de Manitoba, a comunidade feminina é mantida analfabeta e desconectada do mundo. Apenas os homens, com propósitos macabros, sabiam ler. Tudo o que ia contra os preceitos da comunidade era taxado de pecado e de produto perigoso da imaginação feminina. Embora o grupo feminino fosse analfabeto, sabia de cor e salteado passagens das Escrituras servindo de esperança para a libertação daquele aprisionamento sujeito a acontecimentos traumáticos.

Em 2009, alguns dos homens da cidade foram apanhados em flagrante delito pelas meninas dispostas a provar que os seus relatos eram verdadeiros. Diante dos factos, as mulheres maduras decidiram munir-se de coragem ao chamarem a polícia. De oito homens, sete foram condenados.

No filme observa-se o seio da comunidade ultraconservadora menonita, onde se reúnem mulheres para decidirem o seu amanhã. Quem narra a trama é Autje (Kate Hallett), uma das adolescentes de Manitoba filha de Mariche (Jessie Buckley). Para quem nunca ouviu falar nos menonitas, huteristas ou nos amishes, todos descendentes dos anabatistas e com raízes na Reforma radical do século XVI, perder-se-á no tempo retratado no filme e julga que a trama ocorre no tempo passado. Mas o brilhantismo deste filme reside na alienação temporal e geográfica. Observa-se no grande ecrã meninas e mulheres (e August Epp) rodeadas de feno e charretes, sem luz elétrica - toda esta paisagem passa a ideia de que a história é retratada noutra época que não o ano de 2009.

Da ausência temporária dos homens naquela comunidade, surge a convocatória urgente organizada por aquelas menonitas exaustas e esgotadas de tanta agressão causada por aqueles perpetradores. A reunião tem como objectivo decidir o futuro daquelas mulheres cuja fé em Deus não se perdeu, apenas nos homens. A decisão recai em três hipóteses: 1 - ficar, perdoar e orar; 2 - reagir, lutando; 3 - abandonar a comunidade, partindo juntas. Das três hipóteses, uma seria votada pela maioria para o bem das mulheres e das suas crianças. August Epp (Ben Whishaw) é o único homem presente para tirar notas das reuniões. Também é um menonita excomungado por ser filho de uma mulher também da comunidade, mas inconformada com o sistema machista prevalecente naquele sistema auto-sustentável que vive à parte da sociedade. Apavoradas e atentas ao tempo definido pelos estados do céu, acreditam que têm que decidir o mais rápido possível por causa da presença súbita que poderia surgir dos homens detidos e que poderiam ser libertados a qualquer momento. A medo, vão votando numa das três hipóteses para saírem do conluio agressor que colocou a paz daquelas mulheres em sobressalto. Durante as reuniões vão partilhando os seus traumas e medos.

A fotografia é um sépia azul, quase um preto e branco, para enfatizar um não tempo e um não lugar. A falta de cor também exprime a tristeza que habita aquele espaço. A dinâmica e o ethos do elenco Salome (Claire Foy), Mariche (Jessie Buckley), Ona (Rooney Mara), Mejal (Michelle McLeod), Agata (Judith Ivey), Scarface Janz (Frances McDormand) e August (Ben Whishaw) poderiam ser adaptados para uma peça de teatro, sente-se a imersão e a nudez espiritual de cada uma destas mulheres. É arrebatador escutar o hino "Mais Perto Quero Estar" (Nearer, My God, to Thee), escrito no século XIX por Sarah Flower Adams, cuja temática relata o sonho de Jacó e o pacto de Deus com o patriarca responsável por realizar o sonho do seu povo. Tal como o sonho de Jacó, o grupo de mulheres e crianças também foi ao encontro de um porto seguro numa terra que seria delas e dos seus descendentes.

Os menonitas são cristãos e seguem os ensinamentos do pioneiro e fundador do anabatismo Menno Simons, líder religioso frísio do século XVI. Parte dos menonitas não diferem dos evangélicos e protestantes, algumas denominações são conservadoras e vivem em comunidades isoladas, outras são mais abertas à sociedade. O motivo da divisão da comunidade deve-se a conflitos internos e perseguições, o que motivou que algumas se tornassem ultraconservadoras para proteger práticas e tradições.

A voz destas mulheres representa o conflito interno da luta entre tradição e vontade. Women Talking, escrito por uma mulher, realizado por uma mulher e representado por mulheres, aborda assuntos ainda muito presentes nos dias de hoje, poder e política, violência, consentimento e perdão, fé e rebelião. Infelizmente, continua, ainda hoje, a ser um caminho feito a custo em busca da libertação e justiça.

Texto: Priscilla Fontoura