
A narrativa do filme Women Talking, de Sarah Polley (2022), inspira-se em relatos verídicos ocorridos numa comunidade menonita em Manitoba, na Bolívia, por influência do romance homónimo publicado em 2018, da autoria da canadiana Miriam Toews. Trata-se de mulheres em sintonia e união, que ajudam outras mulheres com a necessidade urgente de declarar ao mundo os actos dramáticos cometidos contra as suas vidas, gerações e futuros. Há que sublinhar que também existem (na vida real) aquelas que, lamentavelmente, aprofundam o poço para a queda de outras mulheres, causando danos aos seus futuros sem demonstrarem a mínima empatia, muitas identificam-se como feministas...
Entre 2005 e 2009, mais de 100 meninas e mulheres foram violadas nas camas das suas próprias casas. As notícias relataram que a mais nova teria 3 anos e a mais velha, 65. Ao depararem-se com o cenário dantesco do sangue que lhes escorria entre as pernas, e com as dores no corpo provocadas pela violência sexual sofrida durante o sono, mantiveram-se em dúvida, por terem sido vítimas forçadas a adormecer sob efeito de anestésicos, vivendo num contexto de alienação social. Tragicamente, todos esses actos horríveis foram provados: alguns homens da comunidade de Manitoba usavam sprays anestésicos, habitualmente destinados a sedar cavalos e vacas, para entorpecer aquele grupo de mulheres e violá-las durante o sono.
Nas ruas de terra de Manitoba, a comunidade feminina é mantida analfabeta e desligada do mundo. Apenas os homens, com propósitos sombrios, sabiam ler. Tudo o que contrariava os preceitos da comunidade era taxado de pecado e considerado fruto perigoso da imaginação feminina. Embora analfabetas, as mulheres conheciam de cor passagens das Escrituras, que lhes serviam de alento e esperança para a libertação daquele aprisionamento traumático.
Em 2009, alguns homens da cidade foram apanhados em flagrante por meninas dispostas a provar a veracidade dos seus testemunhos. Perante os factos, as mulheres mais velhas decidiram reunir coragem e chamar a polícia. De oito homens, sete foram condenados.
O filme retrata o seio de uma comunidade menonita ultraconservadora, onde um grupo de mulheres se reúne para decidir o seu futuro. A narrativa é conduzida por Autje (Kate Hallett), uma das adolescentes da comunidade e filha de Mariche (Jessie Buckley). Para quem nunca ouviu falar dos menonitas, huteritas ou amishes – todos descendentes dos anabatistas e com raízes na Reforma Radical do século XVI – poderá pensar que a história decorre num passado longínquo. O brilhantismo do filme reside precisamente nessa alienação temporal e geográfica. No grande ecrã, vemos meninas e mulheres (e August Epp) rodeadas de feno e charretes, sem luz eléctrica – todo este cenário transmite a ideia de que a história se passa noutra época que não o ano de 2009.
Na ausência temporária dos homens, as mulheres menonitas, exaustas da violência sofrida, organizam uma reunião urgente para decidir os seus destinos. O objectivo é claro: definir o futuro de quem não perdeu a fé em Deus, apenas nos homens. As opções em cima da mesa são três: 1 – ficar, perdoar e orar; 2 – reagir e lutar; 3 – abandonar a comunidade e partir juntas. Uma delas será votada por maioria, em prol do bem-estar das mulheres e das suas crianças. August Epp (Ben Whishaw), o único homem presente, é responsável por tomar nota das reuniões. Também ele é um menonita excomungado, filho de uma mulher da comunidade que, tal como ele, não se conformava com o sistema patriarcal opressivo. Atentas ao tempo e temendo a libertação iminente dos homens detidos, as mulheres percebem que têm de decidir rapidamente. Entre receios e esperanças, vão votando, partilhando traumas e medos.
A fotografia do filme apresenta um sépia azulado, quase a preto e branco, que enfatiza um não-tempo e um não-lugar. A ausência de cor expressa também a tristeza que habita aquele espaço. A dinâmica e o ethos das actrizes Salome (Claire Foy), Mariche (Jessie Buckley), Ona (Rooney Mara), Mejal (Michelle McLeod), Agata (Judith Ivey), Scarface Janz (Frances McDormand) e August (Ben Whishaw) poderiam ser facilmente adaptados para uma peça de teatro – sente-se a imersão e a nudez espiritual de cada uma destas personagens. É arrebatador escutar o hino “Mais Perto Quero Estar” (Nearer, My God, to Thee), escrito no século XIX por Sarah Flower Adams, cuja temática remete para o sonho de Jacob e o pacto de Deus com o patriarca, responsável por conduzir o seu povo rumo à promessa divina. Tal como o sonho de Jacob, este grupo de mulheres e crianças procura também um porto seguro, uma terra onde possam viver em paz com os seus descendentes.
Os menonitas são cristãos que seguem os ensinamentos de Menno Simons, pioneiro do anabatismo e líder religioso frísio do século XVI. Parte desta comunidade não difere dos evangélicos ou protestantes; algumas denominações são conservadoras e vivem isoladas, enquanto outras são mais abertas à sociedade. As divisões internas e perseguições históricas levaram algumas comunidades a tornarem-se ultraconservadoras, numa tentativa de proteger práticas e tradições.
A voz destas mulheres representa o conflito interno entre tradição e vontade própria. Women Talking, escrito, realizado e protagonizado por mulheres, aborda temas ainda hoje muito presentes: poder e política, violência e consentimento, fé e rebelião, perdão e resistência. Infelizmente, a busca pela libertação e justiça continua, ainda hoje, a ser feita a custo.