quarta-feira, 26 de julho de 2023

Salvação para um metro apinhado de gente: Lifeguard no mp3

Imagem: Carlos Lowenstein

Não é verdade que a música que se criava há duas, três ou quatro décadas era melhor. Talvez fosse mais fácil aceitar as preferências das rádios e de outros canais de difusão que colocavam bandas no centro dos holofotes em detrimento de outras. E talvez, caras associadas à divulgação de música levavam melómanos a consumi-la por confiarem nas sugestões desses especialistas. A máquina era pensada de outra forma e nem sempre chegava aos ouvintes com o imediatismo de agora. Hoje, sabemos que a partilha online é imediata, mas também mais efémera. Todos são produtores, promotores e criadores, as funções mesclam-se na era da cultura democratizável. 

Talvez seja também mais difícil ouvir algo que nos faça vibrar por carecer de peculiaridade. Mas a sede de outras sonoridades é saciada quando discos conseguem modelar as expressões faciais. Os americanos Lifeguard são um desses casos. A banda que podia fazer parte do clã Stranger Things, inspira-se no garage, pós-punk, indie rock desconstruído dos anos 90, enfatizado pelos Sonic Youth, para criar música que suscita interesse. De um lado Kai Slater canta melodias e toca a guitarra retro conturbada, do outro Asher Case marca o ritmo com palavras e baixo e ao centro Isaac Lowenstein marca o tempo com batidas intensas. A energia vai alimentando a evolução de uma banda que ainda é recente, mas com todos os nutrientes necessários para lançar discos que necessitamos de juntar à nossa playlist.

O baixo propulsivo de Case e a bateria intensa de Lowenstein alimenta a euforia colectiva, própria de jovens idealistas que vêem nos palcos, estúdios e pessoas à sua volta a sua libertação. Como alguém disse, é como se Sonic Youth e Drive in dessem à luz um filho. Ou uma filha. E Alarm marca esse momento. Esta estranha relação intergeracional que liga gerações diferentes, as mais novas, que muito ou pouco sabem sobre a vida, depende da idade com que se depara com tragédias anti-natura, aos mais velhos, com experiência sobrelotada com memórias, só é possível pela magia que a música tem. Uma coisa é reveladora, as influências são essenciais para o género de música que os Lifeguard fazem. O trio não pretende ser um arquivo musical que traz à superfície a imitação de guitarras underground de décadas passadas, pelo contrário, é o produto de uma comunidade que traz uma nova roupagem alicerçada ao revivalismo do rock de 90.

Dive

No álbum de estreia Dive, os Lifeguard apresentam linhas de baixo que poderiam animar até temas pós-punk mais sombrios, uma bateria apaixonada que aumenta a tensão até ao ponto de ebulição e guitarras ferozes tão saturadas de distorção que se espalham pelas salas. Unfold é sem dúvida o tema que mais chama a atenção pela brincadeira rítmica que o trio cria e Fishnet volta a Sonic Youth como referência maior, mesmo que não seja consciente. As referências de Lifeguard vão de Tortoise, Fugazi a Unwound - bandas que nasceram sem nenhum membro de Lifeguard existir ainda. Contudo, o adn poderia justificar a tendência para o tipo de sonoridade, uma vez que o baixista e vocalista Asher Case é filho de Brian Case (Facs) que comentou com Munaf Rayani de Explosions in the Sky que a incursão do seu filho na música foi por vontade própria e influência de amigos. Verdade seja dita, Dive transparece a exploração de três miúdos com curiosidade para desbravar novos caminhos e cuja pegada é mais transformadora e ousada ao rock do género feito em décadas passadas.

Crowd Can Talk


O mais recente trabalho resulta de um esforço colectivo. 17-18 Lovesong fica no ouvido por tempo indeterminado, aparentemente inspirado por relações desfeitas e por uma profunda autorreflexão. O tema esboça um misto de sentimentos sincronizados por um pós-punk que pede um passeio de bicicleta acelerado. A compilação de dois EPs, Crowd Can Talk, lançado ano passado via Matador, originalmente editado pela Born Yesterday, e Dressed in Trenches, uma colecção de cinco temas, lançado a 7 de Julho, gravado no estúdio Electrical em Chicago, pelo engenheiro de som Mike Lust, é a nossa recomendação para escuta e salvação para um metro apinhado de gente. Lifeguard mostra que a cena juvenil de Chicago encontra-se de boa saúde.

Texto: Priscilla Fontoura