Atrás de duas portas de madeira, estão fixados dois batentes com um escudo. Será algum brasão que represente as Irmãs Carmelitas? ...

Do silêncio de um convento fez-se o No Noise


Atrás de duas portas de madeira, estão fixados dois batentes com um escudo. Será algum brasão que represente as Irmãs Carmelitas? Não se ouve ruído algum. Sente-se uma grande paz. Damos de caras com um pequeno rebanho de cabras, o que é incomum numa cidade tão poluída sonoramente. Dentro de portas sentimo-nos fora dela. Há animais, galinheiro, vegetação, uma fachada com uma cruz esculpida, um jardim, um crematório, troncos no chão que servem de bancos, crianças que correm com satisfação, bancas que têm à venda edições independentes, músicos, um núcleo que do pouco faz muito. A quarta edição do festival de música experimental No Noise, organizada pela Associação Sonoscopia, acontece este ano num lugar de onde não se quer sair, o Convento de Francos. Um espaço que se encontrava abandonado e em estado de degradação há mais de 10 anos. 


Noutro tempo, o lugar onde as vozes do silêncio reinavam, é agora transformado no laboratório onde se encontram instalações sonoras distribuídas pelos "cantos da casa".


A tarde quente e o som abrasador dos dUAS sEMI cOLCHEIAS iNVERTIDAS foi chama ardente para os que se encontravam no claustro. Uma bateria simples que marca os ritmos fortes do baixo, uma guitarra punk desfasada de virtuosismos, uma voz e outros samples que saem da coluna. Precisavamos de um som assim, manifestamente diferente dos demais músicos experimentais e minimalistas que fazem parte do cartaz do festival. Este lugar, onde certamente as irmãs Carmelitas Descalças se encontraram em meditação, transformou-se na reverberação apoteótica pulsada pela bateria forte tocada com toda a garra. 


Este lugar, inaugurado a dois de Fevereiro de 1951 pela irmã Maria de Jesus (D. Marianna Ignez) que, segundo o Etc e Tal Jornal, "doou todas as suas riquezas herdadas da sua família nobre e aristocrata, custeando assim o terreno e obras do Convento de Francos, no Porto" - com mais de 50 quartos e com uma fachada que precisa ser restaurada -, materializa na perfeição o que um festival destas proporções precisa: uma simplicidade pictórica que nos convida a ficar.

No oratório, Paul Abbott, numa atitude meditativa, explora os sons da bateria orgânica, enquanto sons sintéticos e plásticos são emitidos nas colunas. Somos remetidos para África, para os ritmos ilimitados da percussão. Há um desenho preso à tarola que cai e alguém pega nele para devolver a Abbott. Durante o set, o desenho volta a cair e quando esse mesmo ouvinte o segura de novo para o devolver, tenta desta vez comunicar com Abbott. O músico concentrado interage com o ouvinte sem dificuldades. É um set que nos prende e nos deixa emergir naquela exploração rítmica. Ali, no oratório, onde os ouvintes se encontram sentados, os ritmos que transitam entre o minimal e o complexo aproximam-nos de um ambiente quase litúrgico. 


O Convento de Francos, desde que foi abandonado, transformou-se em ponto de paragem para toxicodependentes. Maria Teresa de Meireles Alte da Veiga, actual responsável do Convento e prima da fundadora Marianna Ignez, foi quem cedeu o espaço à Associação Sonoscopia. Durante algum tempo o colectivo com a ajuda de outros mais voluntários limparam o terreno que se encontrava impróprio para que o "menor festival de Verão" pudesse vir a realizar-se. 


No refeitório encontra-se um quadro em azulejos d'a Última Ceia. Nesse mesmo espaço Krake explora a bateria, muitas vezes apenas com a mão direita porque ao seu lado esquerdo tem uma mesa na qual manipula sons ambientais. É uma performance que se lança no sentido mais plástico e industrial e que se conclui com uma flauta tropical. No mesmo espaço, Paulo Eno quebra a liturgia ao servir-se da sua voz para expor, como se de uma masterclass se tratasse, a história e experiências do músico, o que acabou por roubar o tempo que tinha para o concerto e prejudicou os outros músicos que ainda iam tocar. Filipa ia interrompendo para que Eno começasse o concerto. O Ibiza Spider Man, que também protagoniza a história do rock português e Filipa manipulam sons gravados, muitas vezes narrados pela mesma voz, povoado por outros sons declaradamente políticos e que cuja mensagem é manipulada de forma a que as palavras se transformem em jogos. Ouve-se God que manipulado transita para Magog.  


Foram muitos os criativos que mostraram o seu trabalho durante aquela tarde e noite. Ali, onde o silêncio viveu durante décadas para enaltecer o sentido espiritual e meditativo, que tornou aquele num espaço de contemplação, neste dia, com o No Noise foram no mesmo sítio exaltados os sentidos de comunidade e de modéstia, de entreajuda e de querer fazer com pouco - mais importante do que qualquer frivolidade. Viveu-se o real espírito cristão anarquista. Venham mais edições como esta!

TEXTO: Priscilla Fontoura
LOCAL: Convento de Francos, Porto
DATA: 4 de Agosto, 2018
Festival No Noise, 4ª edição, Festival de Música Experimental e DIY