Montagem: Priscilla Fontoura

Montagem: Priscilla Fontoura

Género:  rock progressivo, avant-garde, rock japonês, noise Autores:  Poil Ueda Disco:  Junko Ueda Lançamento:  3 de Março, 2023 Editora:  D...

Género: rock progressivo, avant-garde, rock japonês, noise
Autores: Poil Ueda
Disco: Junko Ueda
Lançamento: 3 de Março, 2023
Editora: Dur et Doux

Lilas Mala

Ultimamente as criações do Oriente têm vindo ao nosso encontro por mero acaso, ou será uma mensagem subliminar? No início do mês, os PoiL, com Junko Ueda, lançaram o disco homónimo. Ao longo do princípio do ano segui com atenção as publicações da banda nas redes sociais que se propunha a tocar na Europa. Eu própria partilhei a mensagem, mas infelizmente parece que nenhuma promotora interessou-se a dar-nos a ouvir numa sala de concertos o disco fabuloso.

Conceptualmente, PoiL Ueda retrata o encontro inesperado entre Junko Ueda, uma figura eminente da narrativa épica medieval japonesa, cuja voz quente e profunda convoca energias terrestres, e PoiL, o monstro que carrega uma loucura orgânica entoado num registo cósmico, progressivo e brutal.

O tema introdutório Kujô-Shakujô entoa um canto budista shômyô praticado pelos monges para afastar os maus espíritos. Convém, se se quiser andar descansado sem as mãos próximas da espada, mas não é o que a segunda parte prediz. O disco segue a estrutura das narrativas épicas japoneses que se centram nas lutas entre clãs que recorriam às artes marciais, à filosofia de respeito ao próximo e à hierarquia. A segunda parte mergulha numa batalha naval pelo controlo do poder, protagonizada pelos Heike e os Genji, dois clãs de guerreiros samurais, cujas gestas foram imortalizadas numa das epopeias mais emblemáticas da literatura japonesa, o Heike Monogatari, que remonta ao século XIII.


PoiL resulta de uma colaboração entre Junk Ueda, a vocalista e tocadora de biwa, e PoiL, a banda de rock francesa. A composição é baseada no canto épico tradicional shômyô tocado ao som do biwa e no canto budista Através da fusão de uma antiga música tradicional japonesa com uma formação musical europeia hipermoderna, este projeto oferece a oportunidade de descobrir um universo musical único. Uma performance inovadora onde o rock experimental desenfreado de PoiL se mistura com a voz suave e sinuosa, a narrativa convincente e o notável carisma de Junko Ueda.

Um disco extraordinário e recomenda-se PoiL em concerto para quem estiver num dos países contemplados pela digressão 2023.

Digressão 2023
01.03 Marché Gare (LYON - FR)
02.03 Zelig (LAUSANNE - CH)
03.02 Kuba (JENA - DE)
04.03 Festival des Arcs en hiver (BADEN - CH)
09.03 Neubad (LUZERN - CH)
10.03 Vera (GRONINGEN - NL)
11.03 Peel Slowly and see (LEIDEN - NL)
12.03 Le Lac (BRUSSELS - BE)
12.04 Momentum (ODENSE - DK)
13.04 Victoria (MALMÖ - SE)
14.04 Turkis (AARHUS - DK)
15.04 Rilksscenen (OSLO - NO)
17.04 Rahuset (COPENHAGEN - DK)
18.04 MS Stubnitz (HAMBURG - DE)
19.04 Tor 9 (BREMEN - DE)
20.04 Roadburn festival (TILBURG - NL)
29.04 April Jazz (ESPOO - FI)
18.05 FIMAV (VICTORIAVILLE - CA)
24.05 Zez (ZAGREB - HR)
25.05 Druga Godba (LJUBLJANA - SI) - TBA
26.05 Limmitationnes (DEUTSCH MINOHOF - AT)
27.05 Orpheum Extra (GRAZ - AT)
29.05 Music Meeting (NIJMEGEN - NL)
10.06 Clandestino festival (GOTHENBURG - SE) - TBC
17.06 L'An Vert (LIEGES - BE)
18.06 Houtfestival (HAARLEM - NL)
28.06 Festival Med (LOULE - PT) - TBA
08.07 Rudolfstadt festival (DE) - TBA
16.07 Musicales de l'Aggly (PLANEZE - FR)
25.08 Shambala festival (NORTHAMPTONSHIRE - UK)

PoiL Ueda:
Antoine Arnera I teclado e vocais, Boris Cassone I guitarra e vocais, Benoit Lecomte I baixo acústico, Guilhem Meier I bateria, vocais, Junko Ueda I satsuma biwa, vocais, Stéphane Piot I gravação na Hacienda, RemyBoy I mistura e masterização, Lilas Mala | artwork, Clément Dupuis | produção executiva, Judith Saurel I Layout, Adrien Arnera I admistração

A narrativa do filme Women Talking de Sarah Polley (2022) inspira-se nos relatos verídicos ocorridos na comunidade menonita em Manitoba, na...


A narrativa do filme Women Talking de Sarah Polley (2022) inspira-se nos relatos verídicos ocorridos na comunidade menonita em Manitoba, na Bolívia, por influência do romance que leva o mesmo nome (2018), escrito pela canadiana Miriam Towes. São mulheres em sintonia e união a ajudarem outras mulheres que carregam a necessidade urgente de declarar ao mundo os actos dramáticos cometidos contra as suas vidas, as suas gerações e os seus futuros. Há que sublinhar que também existem as que escavam mais a fundo o poço da queda para a ruína de outras mulheres, causando dano aos seus futuros sem qualquer empatia.

Entre 2005 e 2009, mais de 100 meninas e mulheres foram violadas nas camas das suas casas. As notícias relataram que a mais nova teria 3 anos e a mais idosa 65 anos. Ao depararem-se com o cenário dantesco do sangue que lhes escorria entre as pernas, como as dores que sentiam no corpo pela força cometida durante a prática de violência sexual aquando do sono, continuaram na dúvida por terem sido vítimas forçadas a adormecer com anestesia a viver num cenário de alienação social. Tragicamente, todos aqueles actos horríveis cometidos colectivamente foram provados. Alguns homens da comunidade de Manitoba usavam sprays anestésicos para entorpecer aquele grupo de mulheres e violá-las durante o sono, tais sprays eram utilizados para sedar cavalos e vacas.

Nas ruas de terra de Manitoba, a comunidade feminina é mantida analfabeta e desconectada do mundo. Apenas os homens, com propósitos macabros, sabiam ler. Tudo o que ia contra os preceitos da comunidade era taxado de pecado e de produto perigoso da imaginação feminina. Embora o grupo feminino fosse analfabeto, sabiam de cor e salteado passagens das Escrituras servindo de esperança para a libertação daquele aprisionamento sujeito a acontecimentos traumáticos.

Em 2009, alguns dos homens da cidade foram apanhados em flagrante delito pelas meninas dispostas a provar que os seus relatos eram verdadeiros. Diante dos factos, as mulheres maduras decidiram munir-se de coragem ao chamarem a polícia. De oito homens, sete foram condenados.

No filme observa-se o seio da comunidade ultraconservadora menonita, onde se reúnem mulheres para decidirem o seu amanhã. Quem narra a trama é Autje (Kate Hallett), uma das adolescentes de Manitoba filha de Mariche (Jessie Buckley). Para quem nunca ouviu falar nos menonitas, huteristas ou nos amishes, todos descendentes dos anabatistas e com raízes na Reforma radical do século XVI, perder-se-á no tempo retratado no filme e julga que a trama ocorre no tempo passado. Mas o brilhantismo deste filme reside na alienação temporal e geográfica. Observa-se no grande ecrã meninas e mulheres (e August Epp) rodeadas de feno e charretes, sem luz elétrica - toda esta paisagem passa a ideia de que a história é retratada noutra época que não o ano de 2009.

Da ausência temporária dos homens naquela comunidade, surge a convocatória urgente organizada por aquelas menonitas exaustas e esgotadas de tanta agressão causada por aqueles perpetradores. A reunião tem como objectivo limitar-se à decisão do futuro daquelas mulheres cuja fé em Deus não se perdeu, mas nos homens. A decisão recai em três hipóteses: 1 - ficar, perdoar e orar; 2 - reagir, lutando; 3 - abandonar a comunidade, partindo juntas. Das três hipóteses, uma seria votada pela maioria para o bem das mulheres e das suas crianças. August Epp (Ben Whishaw) é o único homem presente para tirar notas das reuniões. Também é um menonita excomungado por ser filho de uma mulher também da comunidade, mas inconformada com o sistema machista prevalecente naquele sistema auto-sustentável que vive à parte da sociedade. Apavoradas e atentas ao tempo definido pelos estados do céu, acreditam que têm que decidir o mais rápido possível por causa da presença súbita que poderia surgir dos homens detidos e que poderiam ser libertados a qualquer momento. A medo, vão votando numa das três hipóteses para saírem do conluio agressor que colocou a paz daquelas mulheres em sobressalto. Durante as reuniões vão partilhando os seus traumas e medos.

A fotografia é um sépia azul, quase um preto e branco, para enfatizar um não tempo e um não lugar. A falta de cor também exprime a tristeza que habita aquele espaço. A dinâmica e o ethos do elenco Salome (Claire Foy), Mariche (Jessie Buckley), Ona (Rooney Mara), Mejal (Michelle McLeod), Agata (Judith Ivey), Scarface Janz (Frances McDormand) e August (Ben Whishaw) poderiam ser adaptados para uma peça de teatro, sente-se a imersão e a nudez espiritual de cada uma destas mulheres. É arrebatador escutar o hino "Mais Perto Quero Estar" (Nearer, My God, to Thee), escrito no século XIX por Sarah Flower Adams, cuja temática relata o sonho de Jacó e o pacto de Deus com o patriarca responsável por realizar o sonho do seu povo. Tal como o sonho de Jacó, o grupo de mulheres e crianças também foi ao encontro de um porto seguro numa terra que seria delas e dos seus descendentes.

Os menonitas são cristãos e seguem os ensinamentos do pioneiro e fundador do anabatismo Menno Simons, líder religioso frísio do século XVI. Parte dos menonitas não diferem dos evangélicos e protestantes, algumas denominações são conservadoras e vivem em comunidades isoladas, outras são mais abertas à sociedade. O motivo da divisão da comunidade deve-se a conflitos internos e perseguições, o que motivou que algumas se tornassem ultraconservadoras para proteger práticas e tradições.

A voz destas mulheres representa o conflito interno da luta entre tradição e vontade. Women Talking, escrito por uma mulher, realizado por uma mulher, representado por mulheres, aborda assuntos ainda muito presentes nos dias de hoje, poder e política, violência, consentimento e perdão, fé e rebelião. Infelizmente, continua, ainda hoje, a ser um caminho feito a custo em busca da libertação e justiça.

Texto: Priscilla Fontoura

Reencontrámos Lu Yanan no passado dia 25 de Fevereiro. Desta vez, na Casa Comum, no âmbito do concerto levado a cabo pela antiga solista da...

Reencontrámos Lu Yanan no passado dia 25 de Fevereiro. Desta vez, na Casa Comum, no âmbito do concerto levado a cabo pela antiga solista da Orquestra Filarmónica da China, em Henan, promovido em parceria com o Instituto Confúcio da Universidade do Porto e a Casa Comum (Reitoria) da Universidade do Porto. O concerto de Lu Yanan abriu a janela da Casa Comum para se ouvir a paisagem sonora do extremo Oriente e da música tradicional da sua terra natal, a China. 

Muitas vezes pensa-se o mundo de acordo com a relação que temos com certa realidade. Mas há uma série de diferenças culturais cruciais para uma melhor compreensão do mundo.

Sobre o concerto de Lu Yanan
O concerto de Lu Yanan fez-se com intervalos mediados por um professor, cujo nome escapa-me, para descrever as diferenças da música tradicional chinesa da música ocidental, foi, por isso, sobretudo uma sessão de promoção à literacia musical do extremo oriente. 

Durante o concerto foram dadas explicações sobre as diferenças de como a música chinesa em relação à ocidental deve ser interpretada, destacar quais os instrumentos mais populares e que cuidados precisam, da mesma forma dar a sentir o espírito que habita em cada tema original ou versão tocados por Lu Yanan. A música chinesa em comparação com a europeia contém em si diferenças significativas, uma vez que a sua leitura deve desprender-se da concepção que se tem da música ocidental. Enquanto a música tradicional chinesa é dirigida a um público mais erudito, normalmente no ocidente é a clássica que tem esse enquadramento.
 

Formas e estéticas da música oriental e ocidental
Os tipos de música diferem no sistema tonal, escalas, instrumentos e desenvolvimento histórico. O sistema tonal da música chinesa usa um conjunto de números para representar as notas da escala, enquanto a ocidental suporta-se no solfejo orientado por sílabas para representar as notas da escala. Por outro lado, a música chinesa baseia-se na escala pentatónica, tal como o blues, cinco notas por oitava; enquanto o sistema europeu e ocidental sustentam-se na escala diatónica, sete notas por oitava. A música oriental também emprega glissandos, slides e vibratos para criar melodias expressivas. No que diz respeito à harmonia, a música clássica ocidental é regulada por harmonias complexas e uso de cordas com forma mais abstracta; ao passo que a música tradicional chinesa foca-se em linhas melódicas e harmonias simples. Quanto à estrutura, a música tradicional chinesa usa normalmente a cíclica com melodia e ritmos repetitivos, enquanto a música ocidental clássica orienta-se tipicamente por uma estrutura linear com secções e temas distintos. O estilo performativo da música tradicional chinesa enfatiza a improvisação e ornamentação, enquanto a ocidental segue a partitura. A música tradicional chinesa tem na sua roda de instrumentos o erhu, a pipá e o guzheng, cujos sons e técnicas diferem da europeia como o violino, o piano e o trompete. No geral, os dois estilos desenvolveram-se independentemente com um vocabulário único musical, técnica e estética, contudo, podem obter influência uma da outra - colaborações têm sido levadas a cabo entre músicos orientais e ocidentais para a criação de novos géneros, um desses exemplos pode ser ouvido a partir do lançamento da Antologia da música experimental da China ou a partir do artigo Black Metal Oriental. Apesar de não serem chineses, os Jambinai também podem ser incluídos nesse grupo.

A música tradicional chinesa tem uma longa história que remonta a milhares de anos, com as suas raízes na música tradicional e música de corte. É dirigida para uma elite, como a música clássica europeia que remonta a vários séculos e é marcada por vários estilos e períodos: a clássica, a barroca, romântica e música moderna. A música oriental é mais visual e tende a contar uma história.


Guzheng e Pipá
Lu Yanan dividiu o concerto em duas partes, sendo que a primeira foi tocada ao som do guzheng, considerado um dos mais antigos instrumentos chineses da familia das cítaras, instrumento muito popular no folclore chinês do povo étnico Han. Apresenta uma forma oblonga em que as cordas (entre 21 e 26), presas nas extremidades da caixa de ressonância, passam por um cavalete que determina a altura da nota. Também é conhecido como o piano oriental devido à amplitude de notas, o timbre, e a poderosa expressividade que possui. O tema "Vendendo Flores", um original de Lu Yanan, retrata a história de uma mulher que acorda de manhã para entregar flores numa determinada região. A cítara chinesa não converge nem pertence à mesma família indiana, mas emite a mesma beleza. Muitas vezes a forma como é tocada pode aproximar-se da cítara indiana e reverberar melodias próximas do raga.

Lu Yanan foi afinando a pipá ao longo da segunda parte, por ser um instrumento que desafina com muita facilidade. O primeiro tema "Cisne" emanou pleno encantamento e ilustra dois cisnes enamorados a brincar num lago, enquanto esvoaçam demonstrando contentamento. O segundo tema, um original de Lu Yanan, retrata uma noite passada em Portugal com saudades da sua terra natal. A música chinesa tenta captar sensações espirituais e que se atribuem à natureza. O traço de Lu Yanan é marcadamente calmo, ficando mais intenso e voltando à lentidão inicial.

Pode considerar-se a pipá como o rei dos instrumentos chineses e provém da família do alaúde. O som é mais agressivo em comparação com o guzheng e permite estabelecer paralelos com a expressão musical contemporânea ocidental. As composições dividem-se em dois grandes grupos, peças mais líricas de alusão a observações da natureza e estados de espírito, ou descritivas relacionadas a acontecimentos militares e eventos históricos. A forma de exposição da música remete para a composição ocidental em que a expressão transita para a exploração de sons fora das normas. Os trastes são elevados em relação ao cabo, permitindo menor grau na modelação das notas e mais limitação das notas. Outra peça tocada com ritmo solto e sem acordes regulares pela artista oriental retrata um evento na China no século III A.C. e narra a batalha entre dois exércitos. O rei do batalhão vencido suicida-se junto ao rio a pensar na mulher que deixa, esta alusão lembra parte de um poema de Agustina Bessa-Luís: 

Se eu fosse poeta,
enforcava-me num salgueiro à beira da água,
para ver-me refletido no rio
e sentir na morte companhia.

A escolha de Lu Yanan para esta peça simboliza a separação de um líder que entra numa roda viva de agressividade, cuja representação pode ser aplicada aos tempos actuais na Europa que enfrenta momentos de conflito armado de um líder que age com motivos expansionistas. Muitos dos temas tocados por Lu Yanan poderiam ser acompanhados por imagens projectadas de um dos filmes mais relevantes do cinema moderno chinês, Herói dirigido por Yimou Zhang, pois, além de uma beleza estética e poética singular, retrata tanto cenas de amor como de guerra.

Lu Yanan tem divulgado ao longo de quase duas décadas a tradição musical de uma das civilizações que persiste mais antiga, com mais de 5000 anos de existência. A China integra 56 grupos étnicos que se espalham por um território com mais de 9 milhões de km2, o tempo histórico e a dimensão geográfica deram espaço para o estreitamento ou alargamento da cultura rica em tradições, que contém ligeiras variações ou diferenças dramáticas. A Casa Comum tem vindo a dinamizar iniciativas culturais de entrada livre para trazer literacia cultural à sociedade. Lu Yanan está radicada em Portugal há quase 20 anos e continua a promover a cultura musical do seu país para alargar o horizonte musical das comunidades.



Texto: 
Priscilla Fontoura | Imagens e Vídeos com recurso a telemóvel: Emanuel R. Marques | Concerto: Casa Comum

Os géneros musicais chegam ao desgaste quando explorados em demasia. Deve acontecer com quase todos, quando a repetição começa a prevalecer ...

Os géneros musicais chegam ao desgaste quando explorados em demasia. Deve acontecer com quase todos, quando a repetição começa a prevalecer em detrimento da novidade. E fica difícil superar os pioneiros e todas as bandas que representam esses modelos. No entanto, há sempre uma variável opositora a tudo isto: o vento capaz de alterar a altura das ondas do mar.


Distribuído em seis temas, o álbum dos portugueses Heavy Ocean "H/O", lançado em Agosto de 2021, é um cartão de visita impactante que visualmente poderia ser ilustrado com o mar furioso da Nazaré e uma onda da dimensão de Kanagawa, pintada por Hokusai. O trio composto por Ricardo Vasconcelos, a quem se deve a autoria do design, Tiago "JAYMZ" Oliveira (Lhabya) e Hakän Säs Hipolitür tanto cabe no ambiente heavy-metal mais cerrado como no mais ecléctico.


Heavy Ocean

- Os Heavy Ocean não são recentes nisto de ter bandas, pois não? Como se dá a reunião? Sei que por alguns anos eram um duo e depois juntou-se o baixista num encontro acidental no Stop.

Hakän - Não é a nossa primeira experiência com bandas, mas tirando o Tiago que já tem uns anos disto, para os restantes, Heavy Ocean é o seu primeiro projecto a sair da sala de ensaio de forma mais séria.

O projecto nasceu em 2016 quando o Tiago propôs a ideia ao Ricardo de comporem algo diferente do que até então tinham feito em outras bandas. Inicialmente a ideia seria serem apenas os dois, só guitarra e bateria, mas à medida que iam compondo, foram sentindo falta de algo mais para complementar. Paralelamente a isto, eu ensaiava perto da primeira sala de ensaio de Heavy Ocean e gostava de ficar por perto a ouvir o som que “fugia” das paredes. Quando soube que o Tiago (que já conhecia de outras guerras) era um dos membros do projecto, e que ainda não tinham baixista, propus-me a uma audição. Foi já com os três que surgiu o nome Heavy Ocean.

 

- Lembro-me do Tiago, mas não na bateria. Olá Tiago, já não nos falamos há muito e, já agora, parabéns, noto que colocas um dedo criativo na bateria, por exemplo, a “Pale Horse” tem detalhes interessantes, e não a utilizas apenas como instrumento de acompanhamento. Davas voz aos Lhabya nos idos anos 2000, e sei que tiveste um problema nas cordas vocais, o que acabou por fragilizar a tua continuidade na banda. Já tocavas bateria desde aí ou foi um instrumento que foste tendo interesse mais tarde?

Tiago - Olá Priscilla! Antes de mais obrigado pela entrevista e pelas palavras. É verdade, já nos conhecemos há tantos anos e voltamos a encontrar-nos novamente graças à primeira arte. A bateria foi a primeira paixão, desde que tinha malta da terrinha com bandas de baile que ficava vidrado a olhar para aquele "monstro" e cheio de vontade de lhe dar porrada. Até que um dia o guitarrista dessa mesma banda me deu essa oportunidade na sala de ensaio deles e, assim que me sentei, fiquei agarrado de tal forma, que a hora que lá estive passou em 8 segundos, como acontece agora nos concertos. Ahahah! Pode-se dizer que foi amor à primeira pancada. Curiosamente tenho uma composição escrita por mim em '91, antes desse episódio, em que me pediram para dizer o que queria ser quando fosse grande, na qual afirmei, com toda a convicção de um puto de 9 anos, que queria ser músico e que o instrumento que queria tocar era a bateria. Pois bem, passados 33 anos, esse sentimento está bem vivo e neste momento já não dá para suportar as agruras da vida adulta sem música, tocada, ouvida e principalmente sentida. E, na realidade, ainda sou esse puto, que toca com o coração na boca, com a intensidade que sente a música, e se calhar isso é que te fez perceber que sim, a bateria em Heavy Ocean nunca será só acompanhamento, mas sim uma terceira "voz", que se tiver que sair da forma tradicional de seguir o baixo sai, se for isso que a música pede. Porque no final, se lhe fizermos a vontade, ela indica-nos o caminho e depois é, como referi, seguir o coração, pois existe um motivo para ele ser o nosso único orgão ritmado e percurssivo. 

 

Assisto a algumas bandas que foram bastante enérgicas nessa altura e, por força de várias razões, descontinuaram essa actividade. Mas agora sentem uma tremenda vontade em reaparecer. Qual a razão que apontam?

Tiago - Penso que na altura era muito mais amor à camisola, um sentimento de paixão genuína pela arte, sempre numa tentativa de imitar os nosso ídolos, mas tudo de uma forma muito rudimentar. Recordo que era a altura ainda muito inicial da internet, não havia todas estes meios de comunicação na net, não havia redes sociais, ou pelo menos nos moldes actuais, em que num segundo conseguimos falar com um músico ou produtor do outro lado do mundo. Era muito mais ir a concertos, conhecer a malta, como te conheci a ti, quando foste tocar aqui perto da minha terra, e depois tentar tocar juntos, onde nos deixassem, muitas vezes quase a pagar para tocar. Hoje em dia as bandas começam logo com condições para chegar rapidamente a um ponto que a nós levava anos. Basta comparares as nossas gravações em K7, ou quem tinha mais posses em Mini Disk, onde ouvíamos mais tudo o resto que a música propriamente dita. Hoje, um computador mais uma placa de som e fazes um álbum inteiro sozinho, no quarto. E se calhar, essa facilidade está a atrair a malta antiga para a música outra vez. Espero que estejas incluída nessa malta e a pensar na reunião daquela tua banda incrível que eu tanto gostava e que nos levou a conhecer-nos e a manter esta amizade até aos dias de hoje.


Tiago "JAYMZ" Oliveira

Gostamos da liberdade de interpretação que não ter voz dá às nossas músicas e até mesmo liberdade artística. Começa a acontecer várias vezes vermos as pessoas a vocalizar as nossas músicas durante os concertos, tem sido um efeito secundário interessante e com o qual não contávamos.


- Parece-me que, apesar de não serem mais uns miúdos, há uma certa ingenuidade que perdura. O que pretendem com esta reunião a três? Ainda acreditam que é possível em Portugal, para quem já andou nestas lides, sabe perfeitamente que é um percurso ingrato... 

Hakän - A música em todas as suas formas sempre foi algo importante na nossa vida, de uma forma ou outra, com mais ou menos força, sempre fomos alimentando este desejo de, acima de tudo, fazer música. O percurso é ingrato e difícil, mas o prazer de pisar um palco e ver as pessoas a dançarem e a sentirem música feita por ti, é um sentimento arrebatador e que dá ânimo para continuar a lutar.


 

- Embora não estejam presentes cordas vocais em H/O, não sinto que haja necessidade. Mas não têm medo de cair no cliché do género, uma vez que o post-rock e o post metal pendem, em grande parte, para o instrumental?

Hakän - Não temos esse medo, até porque existem muitas bandas do género que optam por ter voz. Gostamos da liberdade de interpretação que não ter voz dá às nossas músicas e até mesmo liberdade artística. Começa a acontecer várias vezes vermos as pessoas a vocalizar as nossas músicas durante os concertos, tem sido um “efeito secundário” interessante e com o qual não contávamos.

 

- Como foi desenhado o conceito para este trabalho e como se deu o processo de composição?

Hakän - Actualmente o processo de composição parte, na sua grande maioria, de ideias que o Ricardo nos traz e depois vamos trabalhando os três. No álbum, exceptuando a Numb que já foi composta com a formação completa, este processo foi feito entre o Tiago e o Ricardo. Quando se juntou o baixo foi preciso encontrar espaço para este fazer sentido de forma orgânica em músicas que foram pensadas para apenas dois instrumentos.


Ricardo Vasconcelos

Sim, há muito que voltámos as costas ao mar, mais facilmente procuramos atenção, apoio e validação da Europa, do que arriscamos ser grandes atirando-nos para um mar desconhecido. Apesar desta realidade, cremos haver uma nova geração pronta a arriscar, inovar mas tendo em conta a nossa cultura e portugalidade.


- Como tem sido a resposta ao vosso trabalho?

Hakän - A aceitação do álbum tem sido bastante positiva, principalmente no Spotify, onde temos números bastante interessantes para uma banda da nossa dimensão. Em termos domésticos o feedback também é muito positivo, felizmente quem decide dar uns minutos do seu tempo para nos ouvir acaba por dar o tempo por bem gasto.

 

- Eu vejo o álbum como uma representação das fases do mar. O tema introdutório: a maré que se vai enchendo, os quatro temas: o mar turbulento acompanhado de ventos fortes e “Solace” a maré baixa. Portugal tem uma forte ligação ao mar, mas cada vez mais parece que lhe vira costas para centrar-se nas tendências europeias. Wim Wenders, em entrevista à Antena 1, declara, em 2019, no âmbito da relação que tem com Lisboa: “Lisboa era uma cidade tão diferente, julgo que captámos o último vislumbre de uma cidade que, entretanto, desapareceu. Foi uma sorte ter feito o filme em ’94, e não em ‘96, ou ‘97, porque acho que já não apanhávamos esse vislumbre - o vislumbre de uma cidade antiga que começa a contactar com a modernidade do séc. XX. Agora, a cidade está claramente no séc. XXI, aberta à Europa e de diferentes maneiras, é semelhante a outras cidades do continente, mas na altura não era assim.”. Acrescenta que “a Lisboa que encontrávamos em ‘94 foi a cidade que viveu a Revolução, que ainda guardava traços colonialistas dentro de si, ainda vivia separada do resto da Europa, por esse grande país chamado Espanha, e Lisboa, sentia eu de uma forma muito marcada na altura, era uma cidade que se derramava para o mar, estava virada para o mar, mais do que para as fronteiras terrestres. E agora, quando regresso, sinto o contrário, é uma cidade que contempla a Europa, é como se tivesse virado as costas ao mar, essa mudança aconteceu, entretanto, e é algo de muito significativo, uma cidade virar-se para o outro lado.”. A cidade aqui, pode representar o país. Concordam com a opinião do realizador?

Hakän - Sim, há muito que voltámos as costas ao mar, mais facilmente procuramos atenção, apoio e validação da Europa, do que arriscamos ser grandes atirando-nos para um mar desconhecido. Apesar desta realidade, cremos haver uma nova geração pronta a arriscar, inovar mas tendo em conta a nossa cultura e portugalidade.

 

- Se falarmos de mar furioso, Nazaré surge de imediato. Nunca pensaram filmar um vídeo que possa ilustrar o vosso som? E por que não vídeos para acompanharem os vossos concertos?

Hakän - Actualmente temos um videoclip para a Numb e um visualizer para a Ten Ton Heart, temos ideias para mais vídeos, mas a dimensão das músicas e a nossa exigência guiam-nos para um tipo de trabalho que até ao momento não pudemos fazer (é preciso priorizar os investimentos). O aspecto visual e cénico nos concertos também é algo em que estamos a trabalhar, mas temos de ser práticos, agora a prioridade passa por dar a conhecer Heavy Ocean ao maior número de pessoas possíveis, para que nos queiram ver ao vivo.

 

- Como olham para o cenário de bandas do tipo em Portugal? Vêem união? 

Hakän - Temos tentado encontrar bandas do género para tocarmos juntos, e já temos alguns nomes apontados. No final do ano passado tivemos um experiência muito bonita com os Icosandria, em que nos juntámos para um evento intimista promovido pela duas bandas e que resultou muito bem.


Hakän Säs Hipolitür


- Sei que tu, Hakän, estás envolvido em "conservar" alguns nomes associados ao Stop, uma vez que o seu legado tem sido negligenciado. Como tem sido a resposta das bandas quando pedes para participarem nesse levantamento? E como os Heavy Ocean, uma vez que lá ensaiam, olham para o futuro do Stop?

Hakän - Sim, tenho andando, na medida que o meu tempo me permite, a recolher testemunhos de pessoas que vivem ou viveram o C.C.Stop, não só músicos. A resposta das pessoas é sempre positiva, se bem que a proactividade já é mais reduzida, em grande parte motivada por anos e anos de total ausência de resultados. Enquanto banda, olhamos para esta situação com muitas reservas, o Stop é muito importante para nós e para a comunidade aqui ali se formou, esperamos que tudo se resolva da melhor forma e que possamos continuar a fazer música lá.

 

- Não acham que está a faltar aos H/O mais visibilidade noutros circuitos aqui deste país?

Hakän - Claro que sim, é a parte mais frustrante disto tudo, temos sempre um bom feedback sobre o nosso trabalho, mas é difícil chegar aos “sítios”. É claro que em grande medida a culpa é nossa, uma vez que a “vida de adulto” nos condiciona muito o tempo para dedicar a contactos e divulgação.

 

- O que têm planeado para o futuro?

Hakän - O plano é simples, divulgar a banda, dar concertos e compor novas músicas. 


Entrevista: Priscilla Fontoura
Imagens: 
H/O

Créditos das Imagens: Seven Concept Media
Esta entrevista não foi escrita ao abrigo do novo acordo ortográfico. 

Na República da Irlanda, nos anos 70, há uma criança chamada Sinead Marie Bernadette O'Connor devota à Igreja Católica Romana por influê...


Na República da Irlanda, nos anos 70, há uma criança chamada Sinead Marie Bernadette O'Connor devota à Igreja Católica Romana por influência directa da família, que viria a ser, para muitos, persona non grata devido à sua insubordinação política. Naquela altura, a Instituição seria o bastião de poder e autoridade, principalmente para as mulheres irlandesas obrigadas a corresponder aos desígnios do clero e do pontificado. Vemos, na actualidade, os crimes cometidos por padres contra crianças, abafados pelo clero ao longo dos anos, a serem - finalmente - levantados e denunciados, muitos deles já prescritos pelo silêncio e conivência de muitas entidades. O'Connor também foi vítima desses abusos: sexual, físico, espiritual e psicológico nas mãos daqueles que deveriam protegê-la. Afirmou que ia para a escola com contusões e lesões faciais sem nunca ninguém ter agido em seu benefício.


No final da década seguinte, aproveitando o poder que o mediatismo lhe dava por causa do gradual sucesso que ia tendo, O'Connor enquanto gota no oceano, no que toca a pessoas contracultura que se destacariam por elevar a música a causas profundas, apontou, através dos seus temas e discursos, para as injustiças cometidas por várias instituições contra a Humanidade. Um desses momentos é registado no tributo a Bob Dylan, aquando da celebração de 30 anos da sua carreira, no estádio Madison Square Garden em 1992. Vemos O'Conner vilipendiada pelo público hostil por ter
 rasgado uma fotografia do Papa João Paulo II ao vivo na TV no Saturday Night Live (SNL). 


Para contextualizar a polémica SNL, O'Connor foi a artista convidada para o programa de TV exibido pela NBC. Apesar de não ter dado quaisquer indícios durante os ensaios para o que ia acontecer na emissão em directo, cantou em versão a cappella o tema "Guerra" de Bob Marley, que aborda vários crimes cometidos contra a Humanidade, mas, neste caso, dirigiu-a e adaptou-a para os cometidos pela Igreja Católica Romana. Rasgou a fotografia que substituía uma criança com fome sentada num canto de uma rua (utilizada nos ensaios) pela cara do Papa, e substituiu a palavra racismo, que faz parte da letra da canção, para abuso de crianças, em protesto contra o abuso contínuo perpetrado pela Igreja. No seu livro de memórias, O'Conner ressalta o silêncio total do público e sobre a ausência de todas as pessoas nos bastidores após a actuação, incluindo o seu agente que se fechou no quarto e desligou o telemóvel por três dias. O'Conner foi logo banida pela NBC. Ao sair do estúdio foi perseguida por dois jovens que lhe atiraram ovos, mas, mesmo assim, manteve-se fiel à sua natureza estóica. 

Mais episódios ao longo da vida da artista, que afirmou que não nasceu para ser artista pop, mas uma vocalista que protesta sobre as injustiças, foram marcadamente controversos. O'Connor também boicotou os Grammys porque sentiu que a cerimónia tinha em vista favorecer o sucesso comercial em vez de honrar o mérito artístico. Também não levantou o Grammy que ganhou porque acredita e defende que a função dos artistas é expressar os sentimentos da espécie humana – sempre falar a verdade e nunca mantê-la escondida, mesmo que o mundo não goste do som da verdade. Em 1990, num concerto em Nova Jérsia, pediu para que o hino nacional dos Estados Unidos da América não fosse tocado pela sua aversão ao nacionalismo, provocando nalguns americanos o boicote ao seu trabalho, a incitação à destruição dos seus álbuns e o boicote de várias estações de rádios. Passados dois anos, cantou alto e bom som "War" de Bob Marley, mesmo que desrespeitada pela audiência sentiu no abraço e no encorajamento do seu colega Kris Kristofferson a força necessária para persistir: 
Até que os direitos humanos básicos
Sejam igualmente garantidos a todos, 
Sem discriminação de raça
Isso é guerra

Figuras como Madonna, Joe Pesci e Frank Sinatra ameaçaram a estabilidade de O'Connor, tendo o cantor afirmado que se O'Connor fosse homem, ter-lhe-ia acertado o pêlo, convidando-a a sair dos EUA. Por sua vez, o SNL fez um sketch para escarnecer a imagem de O'Connor, dizendo que estaria a envelhecer mal. Obviamente, a sua aparição seria a redenção das celebridades, se se colocasse no comodismo do canal e do programa, mas de pé bem firmado a artista contrapôs a intenção do canal.


Ao longo do documentário, "Nothing Compares" (2022), dirigido por Kathryn Ferguson, escutamos a história de O'Connor recontada pela sua voz. É a sua única presença no tempo presente da narrativa. "Nothing Compares" é montado sobretudo com recurso a imagens de arquivo. Ainda pequena, testemunhou o inferno da relação conjugal dos seus pais que culminou num divórcio. Face a esse momento, a vocalista foi demonstrando inadaptação escolar - o que a fez encontrar na música o recanto confessional para exorcizar os traumas existenciais perpetrados pela sua mãe, também vítima de outros traumas. Aquando da gravação do videoclip para o tema "Nothing Compares 2 U", O'Connor penetra o seu olhar na lente da câmara que filma o seu rosto em close-up contra um fundo preto. O momento é transformado em catarse para a libertação de todo o peso emocional que a fez recordar a sua mãe, que morreu quando tinha 16 anos e com quem teve um relacionamento conturbado. A canção escrita por Prince foi alvo de polémicas, uma vez que a sua família negou a O'Connor o direito de utilizar a versão de "Nothing Compares 2 U", no documentário. Anteriormente, também já teria admitido no seu livro de memórias "Rememberings" (2021) que Prince já a teria repreendido em entrevistas e desafiou-a para uma guerra de travesseiros e para a qual conjecturou estratégias agressivas, como colocar algo para infligir dor no travesseiro de O'Connor.


O'Connor, tal como o seu percurso escolar, não foi na onda do culto da imagem que a indústria musical exigia para mulheres que a vendiam a troco de dinheiro e fama. No entanto, a irlandesa, desde que começou a abanar a opinião pública, foi sempre um caso controverso quanto a lutas e maneira de estar na vida. No meio do reboliço da objectificação feminina transmitido pelos canais de música mais mediáticos, como a MTV e VHI, apareceu O'Connor para blasfemar contra o ethos do sucesso, uma transgressão que chocou o mundo da música em 1992. De facto, O'Connor não nasceu para ser estrela pop, mas uma verdadeira artista inconformada com a ruína moral da sociedade e dos vários grupos que a constitui. No entanto, as pessoas que agora concordam solenemente sobre as questões popularizadas por O'Connor, as que comungam de movimentos como #metoo por exemplo, são, provavelmente, aquelas que a ridicularizavam na época. E se O'Connor tivesse uma morte semelhante à de Kurt Cobain, teria sido canonizada há muito.


No desfecho do documentário, encontramos a bela mulher a retomar ao lugar onde começou o seu percurso musical: num palco com o tema "Thank you for Hearing me", lançado em 1994. Desta vez para afirmar o que sempre tentou procurar, um lugar de descanso espiritual onde se pudesse sentir abraçada pela paz de quem a ama realmente, sem qualquer intenção obscura por trás. "Nothing Compares" poderia ter questionado a sua conversão ao islamismo, uma vez que a mulher é muitas vezes reprimida pelos seus representantes embrenhados em vertentes ideológicas. Contudo, fica aqui um exemplo vivo de inconformidade e de pioneirismo contra o mediatismo manipulador dos média e da indústria musical que aparentemente luta a favor de causas, mas cujo papel é meramente instrumentalizador. Pergunto o que seria deste mundo sem pessoas com este nível de consciência... 

Texto: Priscilla Fontoura
Imagens: cartaz e frames do documentário "Nothing Compares" (2022)

Álbum "Self Portrait", de Bob Dylan Bob Dylan é um nome que dificilmente escapa a alguém que ouça folk, e é um ícone global cuja p...

Álbum "Self Portrait", de Bob Dylan

Bob Dylan é um nome que dificilmente escapa a alguém que ouça folk, e é um ícone global cuja projecção foi reforçada em 2016 por ter sido laureado com o prémio nobel da Literatura graças à criação de novas expressões poéticas na tradição da música americana. De facto, Bob Dylan é um nome incontornável para a cultura americana. A sua influência como cantor e compositor fez nascer outros autores de referência dentro e fora do revivalismo folk e a sua carreira dura ao longo de cinco décadas. Escreveu cerca de duas dúzias de canções de orientação política, que refletiam a mudança da geração baby-boom do pós-guerra e o apelo a movimentos dos direitos civis e anti-guerra. 


Temas como "Blowin' in the Wind", "Knockin' On Heaven's Door" e "Like a Rolling Stone" estão consolidados na cultura pop. A par da música e poesia em que se sente a promoção de paz e justiça, também acresce ao autor o estatuto de cineasta e artista visual. O seu trabalho tem sido aclamado pelo imenso talento plasmado nas suas obras. No âmbito da sua exposição "Mood Swings", na galeria de arte Halcyon, em Londres, Bob Dylan afirma o seguinte:
"Estive cercado de ferro toda a minha vida, desde criança. Nasci e cresci no país do minério de ferro onde podia respirar e cheirá-lo todos os dias. Portanto, sempre trabalhei com esse material de uma forma ou de outra. Portões atraem-me por causa do espaço negativo que têm. Podem ser fechados, mas ao mesmo tempo permitem que as estações e as brisas entrem e fluam. Os portões podem prender ou excluir. De certa forma, não há diferença."

Bob Dylan no estúdio, imagem de John Shearer
Bob Dylan, "Double Gate I", 2020 © Bob Dylan

Bob Dylan é versátil e reúne valências nas práticas artísticas que lhe permitem de ir a um ponto a outro sem demonstrar qualquer dificuldade. Em 1966, a voz de Dylan era ouvida do Ocidente ao Oriente. Nesse mesmo ano, no Verão de 29 de Junho, é vítima de um acidente de viação no interior de Nova Iorque. Ainda hoje, tal acontecimento é assinalado como misterioso e cuja disseminação se deu quando foi reportado no New York Times; no entanto, não existe nenhum registo oficial da polícia sobre o acidente. Foi nessa altura que Dylan começou a pegar no lápis e a dedicar-se ao desenho mostrando interesse pelas artes visuais.


A primeira vez que apresentou o seu traço ao mundo foi em 1968, no álbum "Big Pink" da banda The Band, produzido por John Simon. A banda improvisou e gravou com Bob Dylan várias versões do músico folk no porão de uma casa conhecida como "Big Pink" pela sua fachada cor de rosa, em West Saugerties, em Nova Iorque. Após meio século, o Museu de Arte Patricia & Phillip Frost, em Miami, reuniu cerca de 200 obras do artista. À coleção "Retrospectrum" incluem-se desenhos, pinturas, esculturas de ferro e arte efémera, mas também a sua mais recente "Deep Focus" que retrata em pintura cenas de filmes.


O autor faz uma auto-reflexão sobre a sua arte:
"Eu realmente não a associo a nenhum tempo, lugar ou estado de espírito em particular, mas vejo-a como parte de um longo arco; uma continuação da maneira como avançamos no mundo e a maneira como as nossas percepções são moldadas e alteradas pela vida."

Bob Dylan, "Shelter from the Storm", 2020. Carta e desenho de Bob Dylan. © Bob Dylan
Bob Dylan, "Blue Swallow". © Bob Dylan, Retrospectrum.

As suas obras foram exibidas pela primeira vez em 2007 na Alemanha, e a estreia de "Retrospectrum" teve lugar no Museu de Xangai em 2019. A arte de Dylan é marcada pelo seu olhar agudo e configura-se pelo tom universal. Tudo o que faz não é determinado pelo tempo nem pelo lugar, tanto as letras que escreve, as canções que compõe e os quadros que pinta. 

Bob Dylan, "Eat Harlem Elevated", 2020. © Bob Dylan

Bob Dylan, "Sunset, Monument Valley", Tríptico, 2019. © Bob Dylan

Texto: Priscilla Fontoura
Imagens: Bob Dylan

Montagem: Priscilla Fontoura

Montagem: Priscilla Fontoura

Do Porto a Braga, são os Sereias o motivo que nos leva à Roma portuguesa, à cidade de António Pedro Ribeiro e da sua mãe. Com o pé no acele...


Do Porto a Braga, são os
Sereias o motivo que nos leva à Roma portuguesa, à cidade de António Pedro Ribeiro e da sua mãe. Com o pé no acelerador, tenta-se cumprir a lei, mas, também, chegar a tempo do concerto. Sair do tédio, após a semana de trabalho, é a agenda. Há uma porta que separa o auditório pequeno do corredor de um dos andares subterrâneos do Theatro Circo. 

Todo o imaginário acontece nas nossas mentes permeado pelas letras vociferadas pelo vocalista de Sereias e pelos instrumentos que acompanham o cenário dantesco que nos leva ao inferno de Bosch. Nunca se transita para o purgatório ou para o paraíso. APR representa, aqui, a voz da revolta e da consciência sobre o estado de um país em queda moral e ética, que se reflete nas notícias que nos são transmitidas em loop: a TAP, o Governo, a dona de casa que vai presa porque em desespero mata o marido que a tortura à paulada todos os dias, o senhor que nunca consegue a reforma antecipada com desculpas esfarrapadas mascaradas de decretos-lei comunicadas pela Segurança Social.

Os Sereias lembram a reunião de tipos outsider que andaram numa escola artística e juntaram-se para a catarse. Já que as cartas registadas à Assembleia não têm resposta, que seja o microfone e a amplificação a ecoar toda a corrosão de estados de alma. Todos os Sereias transmitem tanto visual como musicalmente o estado de um país, da cultura à ciência, da economia ao direito, a caminhar para o abismo. Todos os dias lê-se desinformação vinda dos média, dos tipos amorais que apontam o dedo, que nos dão fake news, cometem plágio, são até agressores que falam de violência doméstica e p# da TV que instrumentalizam o feminismo, sendo as primeiras a praticar bullying contra as mulheres e pactuam com os opressores.

Precisamos destes Sereias frente à Assembleia da República a representar o povo inerte à constante hipocrisia perpetrada pelos governantes deste país e seus empresários, e a dar uma abanão aos políticos correctos que fazem música. Este país que mais parece um poço defecado pelo diabo educa uma sociedade zombificada. Os Sereias nadam no fundo do mar à espera da erupção de um vulcão adormecido que dá sinais pelos seus tremores de terra. O canto dos Sereias não chegou a todos os ouvidos durante o concerto de ontem. Uma sala bem composta mas um público um tanto adormecido e pouco reactivo. 



Depois do excelente País a Arder, temos o disco homónimo lançado em Abril do ano passado, gravado pelo teclista da banda Nils Meisel, na sala 304 do Stop, excepto o tema "A Depressão", gravado na Associação Luz & Vida, produzido por João Pires, Sérgio Rocha e Tommy Hughes misturado por Nils Meisel e masterizado por Chris Hardman na CH Sound. A belíssima capa “Ódio e Amor” foi executada por João Alves e pelo designer gráfico Sérgio Couto. A formação mantém-se, e conta com a participação de Arianna Casellas na voz e de Ra-Yacov nos sopros.

Só há uma afirmação de APR com a qual não posso concordar, o mal não é o dinheiro, são as pessoas. Quando se acabam as folhas, terá o poeta APR algo mais a dizer?

Esperamos que sim!

Texto: Priscilla Fontoura
Imagem: Sandra Correia, telemóvel
Concerto: Theatro Circo - Pequeno Auditório, Sereias, 20 de Janeiro, 2023