Género: Pop, Rock  Álbum: Ghosteen Data de lançamento: 4 de Outubro, 2019 Editora: Ghosteen  youtube.com/watch?v=GwlU_wsT20Q Pare...

Uma interpretação de Ghosteen, um álbum que gira em torno do consolo do amor

Género: Pop, Rock 
Álbum: Ghosteen
Data de lançamento: 4 de Outubro, 2019
Editora: Ghosteen 

youtube.com/watch?v=GwlU_wsT20Q



Parece tarde publicar um texto sobre o último álbum de Nick Cave and The Bad Seeds, lançado, nas plataformas digitais, no dia 4 de Outubro, principalmente numa altura em que se vive muito do instantâneo. Mas Ghosteen merece tempo e absorção. As edições em vinil e CD só chegaram às lojas neste mês.

Ghosteen e a Psicoterapia 
No princípio era o verbo, assim está registado nas Escrituras. É nele onde reside a força, o poder, tanto para o bem quanto para o mal; é na palavra que é proferida a maldição ou a cura. O ser humano é confuso e vulnerável, facilmente se perde na mutabilidade das suas emoções. Ghosteen, o último “discurso” de Cave, molda-se aos sentimentos que deambulam entre extremos de apatia e empatia, de uma dor infinita a um vácuo emocional.

Em todo o poder que Cave atribui ao verbo fluem sentimentos contraditórios, cuja busca reside apenas no encontro da paz, para destruir um relógio que parou.

Peace will come, and peace will come, and peace will come in time
Time will come, and time will come, a time will come for us
Peace will come, and peace will come, and peace will come in time
Time will come, and time will come, a time will come for us

A boca fala do que o coração está cheio, assim disse o profeta de Nick Cave. Surpreendido pelo falecimento do seu filho Arthur, o orador tenta colar os fragmentos da sua memória para narrar a temporalidade da ruína emocional à reconstrução. Este é um Nick Cave mais maduro à tragédia muito tempo alimentada com dor e sofrimento.

Ghosteen é a extensão de Skeleton Tree, a continuidade da cura feita pela psicoterapia que depende das palavras para conseguir voltar a caminhar. Um álbum que leva tempo para ser absorvido e que ganha força a cada passo dado para parar a letargia nessa viagem densa e difícil, profunda e pesada, na qual não se vislumbra um futuro encantador. Nem todos estão preparados para ingressar numa que requer tanto quando a dor se torna incapacitante. Estreado no dia 3 de Outubro no canal da banda do YouTube, eis que num instante começa a ser criada uma terapia colectiva em que cada fã exprime cada perda que sofreu. É uma dor muito individual num estado de luto global. 

Há circunstâncias evitáveis a que as pessoas poderiam escapar: deslealdade, traição, desonestidade, usurpação, interesse; já outras que são inevitáveis, a morte é uma delas. As primeiras não estão directamente ligadas a estratos sociais, a falta de escrúpulos é transversal a qualquer estatuto e, muitas vezes, essa máscara é usada por quem deveria ser moralmente mais recto. O verbo utilizado pelos políticos, religiosos e comunicação social é o caminho que muitos utilizam para levar os cordeiros ao estreito da manipulação cega, arraigada nos interesses sujos, sob a égide da maçã saborosa. 

No penúltimo Skeleton Tree Cave deixou a caixa de Pandora aberta, abrindo o mote para outro capítulo que não se desliga do antecessor, assumindo a mesma estética sonora. A apatia presente em Ghosteen utiliza, tal como em Skeleton Tree, as palavras para curar um coração despedaçado que não sabe quanto tempo vai precisar para se refazer. 

Projecção - Narciso e Alice
Nalgumas culturas nativas, a imagem reflectida das pessoas contém um grande valor simbólico. Em muitas culturas pré-tecnológicas, acredita-se que a fotografia rouba a alma do indivíduo, sendo que a imagem é a alma. Essas imagens reflectidas deles mesmos, com as quais Narciso e Alice de Lewis Carroll se confrontam, são o portal para olharem para dentro das suas almas, para as profundezas mais íntimas e particulares de cada um/a. Enquanto Narciso contenta-se apenas com a superfície e com o aparência da sua própria imagem, Alice não se satisfaz com essa experiência superficial, olha para o espelho e volta a olhar através dele, quando o faz, entra dentro dele, num mundo diferente, o que se encontra além, onde residem infinitas possibilidades imaginativas para a psique humana. Através desse processo psicoterapêutico podemos entrar na aventura rumo ao nosso Eu interior e detectar onde se encontra o lado mais negro e assombroso de cada um de nós. A dor coloca tudo em perspectiva, o que outrora tinha importância deixa de ter. 

Ghosteen é iniciado pelo tema Spinning Song. Serão, no fundo, palavras dirigidas à mulher de Cave? O músico dirige-se ao rei do Rock ‘n ‘roll, a Elvis Presley, como uma figura americana mitológica, simbolizando o estado de glória para a ruína que se vai transfigurando. 

Once there was a song, the song yearned to be sung
It was a spinning song about the king of rock 'n' roll
The king was first a young prince, the prince was the best
With his black jelly hair he crashed onto a stage in Vegas
The king had a queen, the queen's hair was a stairway

Em Spinning Song, Cave, num exercício verbal, convence-se que a paz chegará a seu tempo. Enquanto há amor, essa esperança perdura, repetindo a oração para curar as feridas mais profundas. A utilização das palavras com o intuito de curar tem a sua origem nos Gregos. Os Gregos reconheceram a fala como o maior tesouro do Homem. Há muito que precisamos da utilização da palavra para soltarmos os demónios do coração. A tormenta que impele a ligar a outro ser humano para procurar algum tipo de conforto. Nessa medida, Cave é um homem cansado que precisa da força dos Seeds para continuar a poética. A fala só pode ser um tesouro quando bem utilizada, caso contrário mais vale silenciar, como insinua em Waiting for You, seguido do embalo do refrão que canta num tom dramático acompanhado do arranjo litúrgico e atmosférico.

sometimes it's better not to say anything at all

Bright Horses inicia com o timbre angélico de Warren Ellis. Tudo é como se vê, não há Deus, diz Cave, “galopando” entre passos de niilismo e de fé, assente na instrumentação construída a partir dos arranjos. Não há problema em amar algo intocável, como um fantasma que deambula entre estados para tentar preencher o vazio que ficou. 

Ghosteen representa um espírito migratório. A capa kitsch ilustra uma paisagem do Éden sem Adão nem Eva, da mesma forma remete para o imaginário fantasioso de "As Crónicas de Nárnia". A descrição do álbum também é bastante gnómica: os oito temas do primeiro álbum representam as crianças, as duas faixas longas e as palavras faladas, no álbum dois, são os pais dessas crianças, um álbum duplo que gira em torno do consolo do amor. 

There's a picture of Jesus lying in his mother's arms
Shuttered windows, cars humming on the street below
The fountain throbbed in the lobby of the Grand Hotel
We checked into room thirty-three, well well, well well

Nick não está sozinho, nesta viagem está sempre acompanhado pela mulher Susie, a sua co-viajante, que carrega e partilha a dor do luto na proporção que cada um sente. Mas Cave protege-a, mesmo sabendo que Susie precisa também de chorar, ninguém é forte o suficiente, na vulnerabilidade está também a força, na mesma pintura em que Jesus figura deitado nos braços da sua mãe cantado no tema Night Raid.

Vislumbre da Luz
Existe experimentação instrumental ao género Pink Floydiano no início do tema Sun Forest, que fala de uma floresta onde está a passagem para outra dimensão, uma melhor com luz e que trava o sofrimento. 

There is nothing more valuable than love
And I lie amongst the leaves and the burning trees
And the fields of smoke and the black butterflies
And the screaming horses and your bright green eyes, so beautiful
Ah your bright green eyes, so beautiful

I am here beside you
Look for me in the sun
I am beside you, I am within
In the sunshine, in the Sun

Todo o álbum é pautado por efeitos de Warren Ellis. Os Seeds são como os discípulos de Jesus, prontos para ajudar Cave nesta catarse. 

Na segunda parte do álbum encontra-se outra dimensão onde há beleza, já não existe tanta instrumentação lacónica, há mais notas e ritmo. Um apelo à renovação do espírito que é leve e que já não vive do passado. O álbum que marca o 40º aniversário da carreira de Nick Cave, não precisa de palavras para garantir o seu lugar no pedestal da música, apenas é necessário ter a capacidade de sofrer e resistir.

Texto: Priscilla Fontoura