© Sandra Correia Crus e directos ao assunto, os All Kingdoms Fall expelem as angústias e revoltas num grito que funde o hardcore em...

All Kingdoms Fall lançam o EP Vanuatu’s Tumble, a esgrima entre luz e sombra

© Sandra Correia

Crus e directos ao assunto, os All Kingdoms Fall expelem as angústias e revoltas num grito que funde o hardcore em momentos mais ambientais e melódicos. No início do ano estrearam o EP Vanuatu’s Tumble que inclui cinco temas, gravado nos estúdios da RedBox, em Paços de FerreiraO trabalho resulta, segundo as palavras de All Kingdoms Fall, “num registo homogéneo, negro e melancólico, mas também violento que descreve uma visão pessoal sobre a vida, a partilha e o legado da mesma.”. 

Os AKF começaram em 2018 e são cinco músicos com experiência no underground nacional. Não obstante as dificuldades que tiveram que enfrentar entre mudanças na formação da banda, acabaram no estúdio a gravar o EP que tem como capa a personificação de estados de alma subjacentes ao conceito lírico/musical, realizada pela ilustradora Sandra CorreiaA dicotomia entre brutalidade e melancolia faz parte do universo desta banda que se esgrima entre luz e negritude, entre simplicidade e complexidade.

Encontram-se todos de boa saúde?
Marcos: Sim, tendo em conta o panorama actual, felizmente estamos todos bem.

Pinto: Calma [risos], esta pergunta é relativa a questões pandémicas ou é de cariz global? Isto, porque, se for para acrescentar enfermidades que começaram a surgir a cada manhã nestes pós 30 tenho uma lista a apresentar! Bem, ok… já percebi, fica para outra altura! Vamos ao que interessa.

© João Fitas


"São músicas que falam de opressão religiosa/política, de escolhas, de morte e de uma particularidade humana à qual não sou imune e que me incomoda que é a cobrança. Parece que existe uma necessidade de cobrar, ou seja, nós por norma não fazemos algo de bom por uma determinada pessoa sem termos a esperança de cobrar de seguida. Mas, se um dia precisarmos dessa pessoa, estamos de facto à espera que ela nos retribua. Penso que tem tanto de natural como de negativo."


Como correu a gravação do EP e como tem sido a sua promoção?
Vilela: A gravação do “Vanuatu’s Tumble” correu muito bem, ocorreram nos estúdios da RedBox em Paços de Ferreira, onde fomos bem recebidos e acompanhados. O que não poderia ser de outra forma, uma vez que o produtor deste nosso primeiro trabalho é também um dos guitarristas da banda. O contratempo mais significativo durante a criação/produção deste trabalho foi ainda em fase de pré-produção. Quando terminada, o José Ribeiro, guitarrista no momento, viu-se forçado a abandonar o projecto por motivos pessoais. Foi então, que o Jorge passou a fazer parte do projecto, não apenas como produtor, mas também como músico. Esta situação levou a que as músicas sofressem novos arranjos e atrasou um pouco a entrada em estúdio para as captações finais.

Marcos: A promoção do EP, assim como do projecto no geral, está em andamento devido às circunstâncias e de todos os acontecimentos que têm vindo a afectar o planeta e em especial o panorama cultural/musical, não nos está a ser fácil, temos de admitir. A falta de concertos, que é o cenário onde o nosso “ruído” pode atingir a sua verdadeira expressão, veio, de certa forma, pregar uma rasteira, uma vez que acreditamos que é uma das melhores maneiras de promover um trabalho desta natureza. De qualquer forma, não estamos parados, temos como principal objectivo a curto/médio prazo, lançar algum conteúdo multimédia para circular pelas redes sociais e algum merchandise e começamos também a escrever novo material. Contudo, esperamos que as coisas possam voltar ao normal ou “novo normal” o mais rápido possível para podermos levar este projecto avante.

Qual o conceito por detrás de Vanuatu’s Tumble?
Pinto: Vanuatu’s Tumble fala de pessoas, em grande parte de uma forma singular e muito baseado em emoções pessoais, mas consigo facilmente espelhar na maioria das pessoas que me rodeiam ou mesmo na sociedade que penso conhecer. É um trabalho que, de uma forma grosseira, caracteriza os limites da liberdade individual e tenta reflectir sobre a definição de liberdade. Pois acredito que a liberdade que tanto procuramos e pela qual passamos a vida a lutar só atinge a sua plenitude se em cada gesto se tenha em conta a liberdade do outro, a liberdade dos outros seres, a liberdade da natureza, mesmo que isso possa impor limites na nossa liberdade pessoal. São músicas que falam de opressão religiosa/política, de escolhas, de morte e de uma particularidade humana à qual não sou imune e que me incomoda que é a cobrança. Parece que existe uma necessidade de cobrar, ou seja, nós por norma não fazemos algo de bom por uma determinada pessoa sem termos a esperança de cobrar de seguida. Mas, se um dia precisarmos dessa pessoa, estamos de facto à espera que ela nos retribua. Penso que tem tanto de natural como de negativo.


"Às vezes dou por mim a pensar que o acto mais maligno e perverso que a minha imaginação consiga produzir de certo já aconteceu vezes sem conta por ordem ou vontade humana, mas a maior parte dessas situações continuam ocultas e depois reparo que ainda existem outras igualmente atrozes e que são legais e até encaradas como arte. E sim, claramente me estou a referir às touradas (termo este que me parece demasiado deleitante para o que realmente define). Enquanto estas práticas forem legais e apoiadas, não me surpreende nada que apareçam canis ilegais com tortura dos animais e da mesma forma situações racistas."


- Agora por causa da pandemia, como sabem, muitos festivais não aconteceram, o que veio alterar todas as perspectivas de concertos para este ano, têm tido propostas para o próximo ano?
Marcos: Efectivamente antes desta história da covid já tínhamos algumas datas programadas que poderiam levar a outras datas mais tarde, coisa que não aconteceu. Esses mesmos concertos podem vir a ser reagendados, mas até à data não temos concertos à vista, infelizmente.

- O hardcore tem como discurso a sobriedade ligada aos direitos sociais. Apesar do vosso som também pender para o metalcore, o hardcore é a raiz que serve de fio condutor para as vossas líricas. Como se colocam em termos de pensamento face ao cenário tão atípico que estamos a viver?
Pinto: De facto, tem sido um ano intenso, diria até constrangedor. Pois ao mesmo tempo sinto que passou cerca de uma década e, efectivamente, vivi uma semana! Mas, respondendo à pergunta, e admitindo que se refere principalmente à questão das manifestações anti-racismo, nem sei por onde começar. Com a certeza que este assunto alimentava uma conversa para toda a noite, vou tentar sintetizar. Sinto que é simplesmente ridículo ainda existir racismo seja qual for a sua natureza, mas não me surpreende. Às vezes dou por mim a pensar que o acto mais maligno e perverso que a minha imaginação consiga produzir de certo já aconteceu vezes sem conta por ordem ou vontade humana, mas a maior parte dessas situações continuam ocultas e depois reparo que ainda existem outras igualmente atrozes e que são legais e até encaradas como arte. E sim, claramente me estou a referir às touradas (termo este que me parece demasiado deleitante para o que realmente define). Enquanto estas práticas forem legais e apoiadas, não me surpreende nada que apareçam canis ilegais com tortura dos animais e da mesma forma situações racistas. Sim eu sei, parece que estou a misturar dois assuntos (e talvez esteja), mas, sinceramente, acho que estão bastante relacionados porque está tudo directamente ligado com a maldade interior. Voltando ao assunto do combate ao racismo, acho que tem de ser feito tudo que estiver ao alcance, tem se ser um trabalho contínuo, diário e de perseverança para construir e não destruir o que tem demorado tanto a construir. E na minha opinião, aconteceram algumas situações negativas, mal pensadas que temo que se tenha recuado um pouco.

© João Fitas

- A origem e os alicerces do hardcore é um meio de entre-ajuda, em Viana do Castelo há uma comunidade bastante estruturada e forte. Alguns de vocês vêm do Minho e vivem no Porto. Como comparam essas estruturas e dinâmicas, apesar de Viana ser bem mais pequena que o Porto, acham que o hardcore é mais unido nesses meios mais pequenos?
Vilela: O único membro que vem do Minho é o Pinto os restantes somos todos da zona do Porto. Sinceramente pensamos que o panorama do hardcore é de entre-ajuda a nível nacional, aliás mesmo a nível internacional é um núcleo bastante estruturado e unido e é um orgulho perceber a quantidade de causas humanitárias e de apoio animal que estão relacionadas de alguma forma com bandas, promotores, fãs do mundo do hardcore. Contudo, sendo mais analítico e a ser específico, sim, acreditamos que os núcleos mais pequenos são onde poderá haver mais pro-actividade e dedicação, mas, por outro lado, também podem provocar algumas barreiras como a entrada de conteúdo novo e, por vezes, infligir alguma asfixia nesses núcleos.

- O artwork é criado pela ilustradora Sandra Correia. Como se construiu a iconografia do EP?
Pinto: Vai parecer clichê o início desta resposta. Mas, a verdade é que foi mesmo um processo natural. Como já foi dito, as músicas falam de opressão, escolhas, mas também uma materialização muito forte da expressão “porque tem de ser”. O nome do EP foi inspirado numa tradição de uma das ilhas de Vanuatu que consiste num ritual que é um verdadeiro mergulho na terra preparado durante a adolescência. Saltam de uma torre com cerca de 30m amarrados pelos tornozelos a uma planta que se torna ligeiramente elástica naquela altura do ano. Esta elasticidade é difícil de controlar e é basicamente isso que vai ditar a sobrevivência do jovem, permitindo que este se torne adulto e respeitado. O nome do EP surge da vontade de espelhar esta prática para as nossas vidas. Metaforizando desta forma as nossas acções diárias, desde questões profissionais, amorosas ou familiares. Demonstrar que todas elas estão relacionadas e se influenciam constantemente num “preparado” bem oleado pelo mundo capitalista e político, promovendo decisões para as quais não conseguimos em grande parte das situações perceber o seu verdadeiro impacto na nossa vida e na vida das pessoas que amamos. O desenho apresentado pela Sandra não teve uma evolução, apenas fomos falando durante alguns meses onde eu divagava um pouco sobre as letras e um dia foi-me apresentada a proposta pelo qual eu me identifiquei totalmente. Apresentamos a ideia aos restantes elementos e a opinião foi unânime.

Dessa expressão surge a capa do álbum onde se consegue perceber uns olhos tristes, sem vida, com a opinião brutalmente censurada e alterada para um sorriso forçado com medo da consequência.

- Temos uma rubrica intitulada Bagagem, onde pedimos 5 livros, 5 discos, filmes/séries. Neste tempo de maior confinamento, em paralelo com as vossas gravações, se calhar também vos restou algum tempo para colocar a vossa “Bagagem” em dia. Quais são as vossas últimas actualizações?
Marcos Silva
Livro: O Pão dos deuses, Terrence Mckenna
Disco: New levels, New DevilsPolyphia 
Série: Final space, Olan Rogers

Filipe Vilela
Livro: n/a 
Disco: Revive, 18 Miles
Série: Dark, Ronny Schalk, Jantje Friese

Nuno Pereira
Livro: n/a 
Disco: Like broken Glass, Crowbar
Filme: Bob Lazar, Jeremy Kenyon Lockyer Corbell

Jorge Lopes
Livro: n/a 
Disco: The Congregation, Lepros
Filme: No limite de Amanhã, Doug Liman

Márcio Pinto
Livro: O Último Judeu, Chil Rajchman
Disco:  Low Teens, Every Time I Die
Série: After Life, Ricky Gervais

Texto e Entrevista: Priscilla Fontoura
Entrevistados: All Kingdoms Fall (Marcos, Pinto e Vilela)