Álbum: Nothing as the Ideal Banda: All them Witches Lançamento: 4 de Setembro, 2020 Género:   desert rock, metal, rock, blues, heav...

All them Witches: Nothing as the Ideal (2020), uma ligação afectiva

Álbum: Nothing as the Ideal
Banda: All them Witches
Lançamento: 4 de Setembro, 2020
Género: desert rock, metal, rock, blues, heavy, psicadélico, sludge, stoner, stoner metal

A distância ajuda a análise mais neutra sobre dado assunto ou episódio, mas, quando se vivem experiências que afectam positivamente a forma como as idealizamos, a expectativa sela essa prévia ilusão, que não passava apenas de uma suposição e torna-se realidade.

© Robby Staebler, Blackjack Jennings

Não faz sentido descrever Nothing as the Ideal clinicamente, como se fosse uma atalaia que observa à distância certa ocorrência, ou, neste caso, que ouve com eco. Desde as muitas viagens que fiz ao som de A Dying Surfer Meets his Maker (o meu álbum preferido de ATW), mais os episódios vividos acompanhados pelo disco e o desfecho da conversa que tivemos com Michael Parks Jr. e com o, já não membro da banda, Allan van Cleave no SonicBlast Moledo, em 2016, que a ligação a ATW se tornou mais afectiva do que racional, e por tudo o que isso implica, (partes dessa conversa manter-se-ão no segredo dos deuses). Concluindo e resumindo, ouvir qualquer disco de All them Witches faz-se com afecto.

Já não se ouvia um disco tão introspectivo desde o lançamento de A Dying Surfer Meets his Maker. Começar por falar no último tema do novo Nothing as the Ideal, lançado a 4 de Setembro, produzido pela banda e Mikey Allted, misturado pelo mesmo, com a assistência do engenheiro Neil Dawes, leva ao início e ao conceito do disco descrito pela banda: 
The album is live. Nothing as the ideal is real. Love yourself love your neighbor. Think about how your actions affect the ones around you. Be a light that others want to absorb and reflect. Hope you find something in there that resonates and shakes up the ol subconscious baggage. In the words of a great wise man we are all just walking each other home. This music is our hand in yours. See you around the bend. 

Gravado na Abbey Road Studios, no estúdio 2, onde os Beatles gravaram, Nothing as the Ideal será o disco que colocou os ATW num lugar de destaque em relação a outras bandas de rock psicadélico. Aproveitada a oportunidade, utilizaram tudo o que a sala tinha ao dispor no que respeita a material vintage de som: desde pre-amps a compressores e microfones utilizados por John Lennon e Paul Paul McCartney.

O disco começa com ambientes que remetem para Fear Inoculum de Tool, acontece que logo, no instante a seguir, escuta-se a guitarra singular de Ben McLeod a tocar o blues que tão bem domina mesclado com as influências heavy-metal (se ainda não tiveram oportunidade, ouçam o seu side project Woodsplitter); e a voz de Parks mergulhada nos efeitos usados desde Sleeping Through the War. Definitivamente, a guitarra rítmica de Ben leva a Adam Jones. Assumem, na conversa em directo que tiveram há um dia no instagram, que 41 é o tema que mais temiam mostrar aos fãs. Um tema que deambula entre Tool e os temas mais introspectivos de System of a Down e Katatonia, guitarras potentes e melódicas, refrão que fica no ouvido, todo o álbum é liricamente um diário onde as preocupações de Parks são desabafadas, sem ser muito directo, revela o pessimismo com que vislumbra o futuro, uma travessia sem direcção para uma terra desconhecida e sem origem, reflectindo assim uma humanidade confusa no seu próprio entendimento. Parks começou desde A Dying Surfer Meets his Maker a procurar a essência mais espiritual e filosófica de abordagem lírica para os discos de ATW.

Esteticamente Rats in Ruin distingue-se dos outros temas do álbum, é mais introspectivo e pessoal, transportando à imersão sónica pela força dos ambientes da guitarra eléctrica de Ben McLeod e de outras paisagens sonoras suportadas pelo baixo, não com a mesma identidade mas com a mesma transparência de Easy (Our Mother Electricity) — tema que nunca tocam ao vivo. Rats in Ruin é repetido qual mantra, penetrando passo a passo como um condutor eléctrico que desperta as mentes de quem os ouve, um estado que alerta a humanidade para a situação em que se encontra, de desorientação e confusão. O reverb muralha e transmite os sentimentos profundos declarados em repetição rats in ruin, passando a desdobrar-se numa ambiência "tooliana" e doom atmosférico. Perto do fim da gravação, a banda convidou amigos londrinos para ajudarem à produção da cacofonia da base de Rats in Ruin, pediram-lhes que fossem à cave fazer o maior ruído possível, que na produção foi revertido para soar o mais sinistro possível.

Os ambientes que Ben McLeod consegue fazer vibrar, tanto pelo seu input blues e metal, reflectem-se na magia sónica que flui enquanto toca, aproximando-se do doom metal, e Rats in Ruin corre com independência instrumental interpretando-se a si mesmo com determinação. Liricamente, tal como Parks já havia referido na conversa filmada que tivemos, o vocalista e baixista deixou de ter interesse em abordar questões frívolas, partindo cada vez mais para a introspecção e desenvolvimento de assuntos que o incomodam de foro externo, político e social; e interno, profundo e pessoal. 

Por mais estranho que possa soar, Enemy of my Enemy remete para Pure Morning de Placebo, palavras que se confundem entre temas e ritmos menos ou mais acelerados. A cadência é a mesma, a estética diferente e o tema termina numa bela harmonia em oitava, num sludge metal com guitarras que nos transportam para Baroness e Mastodon. Acredita-se que o clímax, quando tocarem ao vivo Nothing as the Ideal, acontecerá com Enemy of my Enemy, sendo o tema preferido do álbum de Parks e Ben. See you Next Fall (o único tema que não foi gravado em Abbey Road) introduz-se tal como outros temas de ATW — com muita sedução gerado pelo slide guitar que Ben McLeod foi introduzindo a mais e mais discos de ATW, a influência sudoeste dos EUA — como acontece com See you Next Fall, conduz à lendária Blues Highway, o roteiro inesquecível que leva de Nasville, no Tennessee, a Nova Orleans, na Louisiana, com música por todos os lados. Desde lugares onde nasceram grandes artistas até lojas de vinil, salas de gravação e à gastronomia sulista, cada paragem tem uma história para contar. Everest antecipa essa viagem que começa silenciosamente, mas que divaga em constante descoberta visual. Na verdade, Ben consegue chegar ao patamar dos guitarristas que fazem proezas com a guitarra, seduz com ímpeto e delicadeza, elevando o êxtase e encanto implícitos no blues quase a fazer desmaiar quem o ouve numa orgia sónica. 

Os All them Witches têm tido um percurso muito focado no pacote que o mercado da música underground requer, músicos em estado natural e aplicados que não cedem a distracções. Desde Ben McLeod, que editou o pedal Alabaster Fuzz, aos videoclips filmados em película e editados pelo baterista Robby Staebler e à imagem de marca, tudo faz parte do interesse, curiosidade e dedicação que têm aplicado ao imaginário ATW  um trabalho de minúcia que determina o sucesso gradual que têm alcançado. Por isso que Parks canta I am focused em 3-5-7 no disco Sleeping Through the War, a bom rigor os ATW não têm perdido o foco, no decorrer dos anos produzem sem interrupções. Fazem tudo o que lhes está à mão para viverem como gostam, a tocar música, fazer digressões e a exprimirem-se criativamente com liberdade. 

The Children of Coyote Woman tema country blues rock liga os álbuns de ATWThe Marriage of Coyote Woman e The Death of Coyote Woman são temas do disco Lightning at the Door que se ligam a Nothing as the Ideal, um tema que reconta a fundação de Roma, pela perspectiva sulista. Dois irmãos lutam para ver quem controla a região, após o falecimento de sua mãe, uma mulher tão feroz e lendária que as pessoas prefeririam deixar as suas casas a enfrentá-la. Embora poderosa, embora feroz, as vidas dessas pessoas existem num pontinho minúsculo no universo e ainda estão ligadas às lutas e dificuldades de tentar sobreviver no sul rural pobre.

Nothing as the Ideal tem os pés assentes no chão, mas sopra também aos lugares mais misteriosos do espaço. A banda de Nashville tem conquistado melómanos de todo o mundo e sabe como não exaurir os seguidores mais exigentes. Todo este cenário que estamos a viver alimenta cada vez mais a vontade de ver concertos ao lado de desconhecidos sem preocupações, ao lado de quem partilha a mesma intenção. Seria bom poder afirmar See you next Fall a esta banda que esteve em Portugal apenas duas vezes com concertos que deixaram boas marcas. Nós do outro lado do oceano aguardamos o regresso.

Em tom de conclusão, compreendo o fã que assaltou o bastidor dos ATW aquando de uma das suas digressões na Inglaterra, gritando alto e bom som "You saved my life". Para quem compreende o que a música dos ATW significa, acolhe esta confissão com um grande sentido de pertença. Agradeço à minha irmã, por partilhar esta banda que tanto ajudou a enfrentar tempos mais difíceis. 


Texto: Priscilla Fontoura