O Homem nasceu quando lançou flores numa sepultura. - Fernando Linhais - Cemitérios hoje De acordo com o contexto e a cultur...

Nas deambulações pela cidade, encontram-se museus a céu aberto. O cemitério de Agramonte é um deles.



O Homem nasceu quando lançou flores numa sepultura.
- Fernando Linhais -


Cemitérios hoje
De acordo com o contexto e a cultura, o tema da morte ganha dimensões diferentes: tudo depende da forma como se a olha. A influência da religião Católica Apostólica Romana nos países latinos fez com que a morte carregasse um peso quase mórbido centrado no sofrimento. 

O término da vida é um assunto que incomoda a quem o encara como o fecho de um capítulo sem continuidade, porque, a cultura ocidental, muito à custa do último século, e influenciada pelas ideias capitalistas, suportou-se na ideia de Superhomem. A falta de preocupação e consciência com a condição do nosso planeta é reflexo e exemplo directo disso. 

Quando se pensa em cemitérios, talvez seja comum julgar que todas as pessoas são iguais, pois têm um princípio, meio e fim. Tende-se a pensar no lugar apenas para um único propósito, por na verdade ser, na maior parte das vezes, a última morada física. No entanto, todos os cemitérios são diferentes e organizados de diversas maneiras - administrados de acordo com as "ordens" subjacentes aos contextos da época.



Há quem diga que o cemitério de Agramonte poderia ser o Père-Lachaise do Porto, uma vez que se encontram inumadas figuras ilustres da ciência, da arte e mais disciplinas, como a violoncelista portuense Guilhermina Suggia, cujo nome atribuído a uma das Salas da Casa da Música é em sua homenagem; o escritor Júlio Dinis, pseudónimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho; o cineasta Manoel de Oliveira e o negociante e benemérito Conde de Ferreira - Joaquim Ferreira dos Santos, aquele que possui um jazigo de pura ostentação. Os cemitérios portugueses, no seu carácter arquitectónico mais individualizado e na proporção do uso da escultura, aproximam-se, sobretudo, do modelo romântico francês. Não é possível compreender verdadeiramente a escultura portuguesa do período romântico sem uma abordagem intensiva aos cemitérios.





Cemitério de Agramonte e o Romantismo
O cemitério de Agramonte, situado muito próximo da rotunda da Boavista e da Casa da Música, é considerado um património histórico do Porto, um museu ao ar livre localizado na parte ocidental do Porto, sendo que o do Prado do Repouso situa-se na parte oriental da cidade. Do estilo romântico (e um dos mais importantes do país), o simbolismo lá presente contém inúmeros significados. As alegorias mais comuns são a , a Esperança e a Caridade, sendo a talvez a mais utilizada destas três virtudes, dado que surge por vezes apenas em forma de cruz, sem uma componente escultórica evidente.

O seu plano urbanístico com ruas ondulantes e arborizadas ronda os 12 hectares de terreno que combina monumentos históricos e biodiversidade, com as histórias das pessoas notáveis ali inumadas. 

O cemitério adapta o seu nome da quinta de Agramonte que tinha ficado abandonada na sequência da guerra civil do cerco do Porto entre 1832 e 1833. Passou a ser administrado por três Ordens, a do Carmo, a da Trindade e a de S. Francisco. Este cemitério é um verdadeiro museu a céu aberto de arte sepulcral, marcado por uma estética romântica, com os revivalismos do neogótico e assume maiores características arquitectónicas do que escultóricas. A profusão de ornato e a inclusão de elementos escultóricos de vulto também constituíram frequentes soluções para impor uma imagem mais imponente aos túmulos. 

Segundo o monografista Pinho Leal do final do século XIX, a vocação funerária do espaço seria anterior, uma vez que neste cemitério teria funcionado, durante alguns anos, um cemitério para animais domésticos.



Construído em 1855, na sequência da segunda epidemia de cólera do Porto, tem também presente monumentos de relevada importância como o Monumento às vítimas do incêndio do Teatro Baquet, ocorrido em 1888; o Mausoléu de Francisco Antunes de Brito Carneiro, com projecto de Tomás Soller e esculturas de Soares dos Reis; a majestosa Capela dos Condes de S. Tiago de Lobão e o monumental mausoléu da família de Adriano da Costa Ramalho, negociante no Brasil. Em 1855, a situação dos cemitérios do Porto altera-se um pouco devido a uma segunda grande epidemia de cólera. Pela falta de condições as autoridades civis fecharam os cemitérios privativos e mandaram construir com celeridade um novo cemitério municipal, o de Agramonte. Numa primeira fase, o cemitério serviu para inumar as vítimas de cólera. O de Agramonte passou a ser considerado um cemitério municipal de segunda categoria, uma vez que o do Prado do Repouso era considerado mais digno, já que não era improvisado.

Antes do século XIX, eram poucos os que podiam ostentar a sua morte, por falta de dinheiro. Nessa medida, os monumentos funerários eram escassos. "Uma mera placa tumular no chão era já um privilégio de gente muito importante."¹ Muita gente faleceu sem qualquer rasto visual para perpetuar a sua memória. O cemitério romântico foi também concebido para que pessoas com posses pudessem erigir o seu próprio monumento, para espelhar um passado de memórias familiares, de mentalidades, de vaidades, de estéticas arquitéctonicas e símbolos; onde a elite social poderia encontrar a sua última morada.

Na noite de 20 de Março de 1888, o Porto conheceu uma das páginas mais negras da sua história, o incêndio de um dos Teatros mais populares da cidade, o Teatro Baquet, fundado pelo alfaiate António Baquet, localizado na que é agora a Rua 31 de Janeiro, numa noite de proliferação artística e cujo local estaria ocupado por muitas pessoas que ansiavam por ver um espectáculo que atraía imensa gente. A meio da noite ocorreu um incêndio. Muitas pessoas faleceram intoxicadas e carbonizadas, uma tragédia que tirou a vida a 120 pessoas. Tal acontecimento levou a rainha a visitar as famílias de muitas vítimas fazendo-se acompanhar pelo líder do partido republicano. É neste cemitério que é erguido um mausoléu às vítimas do incêndio do Teatro Baquet.


Olhar para o cemitério como um museu a céu aberto é uma lógica que desmistifica o lugar, ajuda também a descobrir e a escavar a história de pessoas que marcaram a diferença no tempo em que viveram, bem como a entender o contexto social e político de certa época. Os cemitérios são também pequenas cidades onde se podem fazer passeios, aqui sente-se a paz perfeita para meditação e encontro, enquanto se contempla as belas magnólias.

O cemitério de Agramonte - como o cemitério do Prado do Repouso - são desde 2005 reconhecidos como Cemitérios Monumentais pela Association of Significant Cemeteries in Europe - ASCE e membros da Rota Europeia dos Cemitérios desde 2010.




Destacam-se ainda a Capela do Cemitério, projecto do Engenheiro Gustavo Adolfo Gonçalves e Sousa, o jazigo municipal (interessante estrutura oval em granito e ferro), o mausoléu da célebre actriz Emília Eduarda (autoria de Teixeira Lopes), os dois jazigos da família Andresen (na antiga secção de não católicos), um deles com esculturas de Teixeira Lopes (datadas de 1897), e outro com esculturas de Alves Pinto, o jazigo Santos Dumont (autoria de Teixeira Lopes), o fotógrafo Emílio Biel ou o próprio Tomás Soller.

Desmistificação do Lugar
Os cemitérios são importantes não só do ponto de vista artístico, mas também como memória das próprias cidades. Se a morte fosse pensada como um momento determinante da nossa existência, talvez os cemitérios fossem mais visitados para conhecer e saber mais da história. Patti Smith nos seus diários escritos aborda muitas vezes as visitas que faz a cemitérios para procurar túmulos de pessoas que marcaram a sua vida, em M Train vai ao encontro dos túmulos de Jean Genet, Sylvia Plath, Rimbaud e Mishima, em Devotion vai ao cemitério onde está sepultado o poeta Paul Valéry. A artista diz que gosta de cemitérios, porque os sente como lugares de "beleza e contemplação". No seu próprio túmulo gostaria de ver apenas uma palavra inscrita: "Trabalhadora".
William Tyler afirmou, num dos seus concertos, que um dos seus lugares preferidos enquanto adolescente eram cemitérios - por serem lugares onde se sente paz. Muitas são as pessoas que visitam cemitérios com variados propósitos, em São Paulo, por exemplo, organizam sessões de cinema nos cemitérios. O espaço é apenas o ponto de partida para se conhecer as histórias que lá habitam.



A morte só deixa de ser tema tabu quando lidamos com o falecimento de alguém muito querido. O seu sentido passa a ser reflexão quando deixa de ser vista na sua maneira mais vulgarizada e dispersa para ser sentida e aprofundada. Na verdade, se a morte deixasse de ser assunto tabu, talvez poder-se-ia esperar uma humanidade mais consciente e menos auto-centrada, contrariamente ao que vemos nos dias de hoje. Hoje, encontramos uma China poluída e difícil de respirar, presidentes norte-americano e brasileiro despreocupados com as alterações climáticas, uma Europa cínica que estabelece falsos acordos de paz e uma África que sofre injustiças internas e externas ao seu continente. Julgamo-nos imortais, e quanto mais o homem se conecta à matéria, menos o consciente se mobiliza para alterar o futuro dos outros. Há pessoas vivas que parecem mortas, e há mortos que continuam bem vivos devido ao legado que deixaram. Muitas questões e reflexões se colocariam, mas há uma que salta à vista: O que é estar vivo?


Texto & Imagens: Priscilla Fontoura
¹ Pesquisa de apoio: http://www.franciscoqueiroz.com/Cemiterios_do_Porto_Roteiro.pdf