Se quisermos humanizar a relação que um guitarrista tem com a sua guitarra poder-se-á comparar como um dos romances mais musicados de sem...

Toby Hay: um músico mais intuitivo do que técnico que se deixa levar pela imersão do Raga

Se quisermos humanizar a relação que um guitarrista tem com a sua guitarra poder-se-á comparar como um dos romances mais musicados de sempre. Parte-se de uma curiosidade e interesse para uma paixão romântica de outra era que faz sangrar dedos. Há quem desista a princípio ou a metade, e há quem se entregue à relação sem desistências - porque o romantismo para alguns se transforma em matrimónio incorruptível. Este romance é devoto ao amor através do tempo e sacrifício, exige corpo e alma por inteiro sem fingimentos. As composições de Toby Hay são transparentes, tudo se sente ao ouvido. Tal conexão é alimentada pela identidade que vai sendo posta em prática todos os dias. Nick Drake era capaz de ficar 7 horas a treinar um acorde, assim como João Gilberto. O à vontade com o instrumento devolve a calma necessária que se converte em terapia, e o tormento - que passou pelo aperfeiçoamento do dedilhar - extrapola a forma. O que será esta dedicação senão amor? 

Toby Hay destaca-se pelo ar angélico e etéreo que se funde nas suas paisagens sonoras que gravitam no espaço indeterminado pelo tempo. A guitarra de 12 cordas Red Kite personalizada foi feita especialmente para o guitarrista e foi criada por Roger Bucknall . É configurada para ser tocada em afinações únicas. New Music for the 12 String Guitar foi gravado durante dois dias nos estúdios Real World. Todos os temas, gravados e misturados por Tim Hay, são registos ao vivo, sem overdubs ou edições.

© Toby Hay

Toby, obrigada por nos concederes esta oportunidade. Como te encontras nesta fase de confinamento? Podes falar um pouco sobre a tua realidade e sobre o que se tem vivido na tua região de Mid Wales?
Tem sido um ano estranho. Digressões canceladas. Duas gravações de álbuns canceladas. No entanto, aproveitei esse tempo e espaço. Tenho sorte por viver onde vivo. Posso andar quilómetros e não ver uma única pessoa. E tenho gostado de fazer jardinagem também. Cultivar coisas trouxe-me conforto. 

A tua relação com a guitarra é muito íntima. Como foste criando esse vínculo?
A guitarra é importante para mim. A música é a minha maneira de me exprimir e vejo a guitarra como uma ferramenta para isso. 

Muitos vídeos em que participas têm como pano de fundo paisagens exteriores e naturais. Acreditas que são pinturas que melhor personificam o teu estado musical e de alma, e que todo o meio envolvente (os pássaros quando cantam por exemplo) inclui-se na poética da tua composição? 
Acho que estás a falar dos vídeos mais recentes que fiz. Tenho gostado muito de improvisar durante estes tempos incertos. A composição sente-se como já estabelecida, final, e terminada. A improvisação sente-se como fluída, adaptável e mutável. Sinto que é muito mais apropriada para agora. As paisagens e sons naturais inspiram essas improvisações.


Claramente que a tua técnica passa por muitas horas de trabalho diárias. Quantas horas mais ou menos tocas por dia?
Não toco assim tanto, deveria tocar muito mais. Há dias em que nem sequer toco. Varia muito, não tenho um regime muito austero. 

É o teu irmão que grava as tuas criações. Como se dá essa relação e como é a vossa dinâmica?
Trabalhei com o meu irmão na maior parte do trabalho de gravação que fiz. Confio nele. Ele sabe do que eu gosto e comunico bem com ele. Não gosto de pensar muito no lado técnico das coisas enquanto trabalho na minha música, então é bom ter alguém que possa lidar com isso. Isso permite que te foques apenas na música. 

The Longest Day é o teu primeiro álbum — uma espécie de homenagem a casa e uma despedida que principia uma viagem por outros mundos, como acontece em New Music for the 12 String Guitar. És influenciado pelos ragas indianos, pela corá da África Ocidental (kora) e pelo trabalho do escocês harpista e copista musical Robert ap Huw — a tua música é portanto uma captura e uma mistura dessas atmosferas, estando também o folk escocês intrínseco à cultura musical da tua região. Todas essas influências coabitam no teu mundo e são sede de conhecimento?
Eu ouço música de todo o mundo. Gosto de descobrir novas sonoridades e elas encontram sempre maneira de se imiscuir no que toco. E às vezes, intencionalmente, deixo-as entrar, mas outras vezes, elas descobrem como entrar à sua maneira. De qualquer forma, eu não ouço assim tanta música, prefiro focar-me na minha. 

Como se deu a alteração do teu instrumento para uma maior adaptação (quanto sonora, quanto tecnicamente prática), de forma a adaptarem-se ao teu corpo e imaginário musical? 
A guitarra lida bastante bem com as minhas afinações pouco usuais. Isso permite-me que toque a música que realmente quero. Penso que isso não me limita e faz com que me abra a novas possibilidades. 

A tua reclusão é um pouco como a caminhada de Henry David Thoreau, uma procura com as árvores mais selvagens, enquanto deambulas pela floresta agreste e profunda. Posso concluir que é assim que vives a tua vida, numa plena pacífica procura do Eu?
Não, eu não vivo sozinho. E apesar de onde eu vivo ser rural, existe um forte sentido de comunidade em muitas vilas e aldeias. Vivi aqui toda a minha vida. Não vivo aqui com qualquer outro propósito. É a minha casa.


Todos os álbuns são reflexo do factor circunstancial da vida. Onde te encontras neste momento de criação? 
Assim como muitas pessoas, ando a pensar mais no futuro do que é costume. Continuo a escrever música e a gostar de improvisar. Não tenho a certeza qual será o próximo projecto. Teremos de esperar para ver. Ando a gravar um novo álbum com o meu amigo, Jim Ghedi, no final do ano. 

Bade Ustad Ghulam Khan disse: When God created us in this world, notes and melodies were allocated among the polis.”, o autor desta citação alude ao facto antropológico e à diáspora das melodias que passaram de um local para outro. Misturas o folk americano com as reminiscências do folk indiano. Essa fusão dá-se a partir da tua descoberta e interesse por músicos americanos que encontraram no raga o seu espaço, como Robbie Basho e John Fahey? Curiosamente guitarristas portugueses e brasileiros também têm uma relação afectuosa com o instrumento. Quando é que começas a estender o folk a outros níveis (darzas) e melodias (gayaki); serve de exemplo o tema The Summer the Sky Cried for Rain, do teu disco New Music For The 12 String Guitar. 
Acho que dei por mim a escrever peças de música cada vez mais longas. Depois dei por mim a usar cada vez mais improvisação dentro da minha música. Lentamente, essas ideias começaram a soar mais “Raga”. Gosto da ideia de que consegues criar um mundo sónico, e tocar dentro dele o tempo que achares por bem. Não há qualquer pressa para terminar. Podes ficar imerso nesse sentimento durante todo esse processo. 

A fusão folk primitivo americano com o raga criam uma natureza enigmática, solitária e profunda, que remete ao hermetismo do sufismo reorientado. De que forma é que a espiritualidade e o esoterismo estão presentes na vida? E serão estas mundividências condutores para o isolamento? 
Eu não vivo de acordo com quaisquer regras, apenas tento viver no presente e ligar-me com o que existe à minha volta. Acho que a música permite-me fazê-lo. 

Robbie Basho associava uma cor para um estado de espírito e propriedades concomitantes e músicos revivalistas do folk britânico, como John Renbourne e Bert Jansch, também compõem canções para 6 e 12 cordas. Acreditas numa espécie de aura transversal à volta de todos estes guitarristas solitários que de alguma forma vos unifica?
Não tenho bem a certeza, acho que o que temos mais em comum é a guitarra. Mas a guitarra é um instrumento tão versátil. Acho que é por isso que tantos músicos conseguiram encontrar a sua voz através da guitarra. 

Há um estado transversal em guitarristas folk, várias fragrâncias são misturadas de cultura com espírito e emoção. Uma liberdade silenciosa que não interrompe a voz interior, passando a forma que se coloca na sombra dos sentimentos para dar lugar à liberdade criativa e emocional. A música clássica indiana sempre prestou atenção aos sentimentos da alma da música, tal como os dervishes dançam em constante rotação para se ligarem ao criador, também os indianos fazem soar melodias como caminho vibratório para a alma ascender ao seu criador, tens também essa intenção?
Para ser franco, não sei precisar a minha intenção. Fazer música é algo estranho para mim. A música é infinitamente fascinante. Como é que o barulho pode ter sentimento ou significado? Não sei, mas sei que gosto dele.


Vivemos tempos assustadores e de desconfiança. Muitos músicos viveram a vida desligados do mundo normal dos seus dias e o sufismo reorientado no ocidente surge através da lente espiritual do oriente que vê esta era como a Kali Yuga, uma era de escuridão e primitivismo, a última etapa antes do regresso a uma era de iluminação; como olhas para este tempo que vivemos?
Não tenho a certeza mas acho que devo apagar as minhas contas de redes sociais brevemente. A música pode ser sentida como algo supérfluo, mas talvez seja nessas alturas que precisamos mais dela? Acho que aprender a cultivar a minha própria comida é uma boa ideia... 

O álbum New Music for the 12 String Guitar termina com Auld Lang Syne, uma melodia conhecida, mas cuja letra não foi decorada por muitos até o final, curiosamente o teu também é instrumental, embora a melodia vocal esteja presente. É um tema cantado principalmente nas festas de Ano Novo no ocidente, muitas pessoas juntam-se para a cantar, para ti é como uma esperança na reviravolta de um novo ano? Uma espécie de retorno às tuas raízes?
Auld Lang Syne é uma canção que aprecio. Consegues encontrar identificação nela e quem a ouve encontra conforto por ela ser tão familiar. É por isso que ela cá está. 

Poderias nomear 5 guitarristas que são uma referência para o teu trabalho?

Gostarias de deixar alguma mensagem?
Obrigado e saúde! 

Texto e entrevista: Priscilla Fontoura
Entrevistado: Toby Hay
Tradução: Cláudia Zafre
Produção: SP