DX , Construído em Residência Artística no Carmo 81, Viseu, incluida no Karma Fest, 2019 Muitas pessoas não convivem bem com o estra...

Criando estranhofones e outros objectos sonoros utilizando materiais anteriormente rejeitados

DX, Construído em Residência Artística no Carmo 81, Viseu, incluida no Karma Fest, 2019
Muitas pessoas não convivem bem com o estranho. A singularidade pode levar a uma espécie de insegurança capaz de interferir nas decisões fulcrais do processo criativo. No caso do Estranhofone — que serve para espicaçar o visível e o audível —, a questão é outra. O atípico ultrapassa as fronteiras convencionais para revelar outras possibilidades. 

Há pessoas que não dão grande relevância a objectos rejeitados, por outro lado há quem lhes atribua importância. E é nessa acumulação, que parte do desconstruir para criar, que encontramos Samuel Coelho e César Estrela. Um músico e um cenógrafo, a dupla que faz do provérbio One man's trash is another man's treasure uma realidade. 


"O projecto Estranhofone, tem sido um momento das nossas vidas em que o processo de transformação de objectos mundanos em objectos artísticos, plásticos e sonoros, surge com outro intento e alento, enquadrado na definição e substância materna do projecto."

- Nem sempre é fácil encontrar alguém com quem podemos criar lado a lado. Como galgam o caminho do Estranhofone? 
Estranhofone - Acima de tudo, com uma confiança e um respeito mútuo. Somos amigos há muito tempo, conhecemo-nos muito bem e fazemos uso do melhor que cada um tem. Somos dois indivíduos que tanto ao nível pessoal como artístico se complementam bem. Ambos tratamos de tudo, desde a concepção artística, passando pela produção até à actuação ou exposição. Nunca nada avança sem a aprovação do outro e neste processo ou caminho há um aspecto fulcral, que é o facto de, humildemente, reconhecermos o que cada um tem de melhor, sensibilidades, aptidões e conhecimento. Desta forma, há momentos no processo, onde um de nós toma a frente e tem uma responsabilidade e dirigismo acrescido. Somos, resumidamente, um músico e um cenógrafo, que se entrelaçam, cientemente, na “estranhofonia”, pela criação destas esculturas cénicas e sonoras ou como, preferimos designar, objectos falantes.
As ideias partem de ambos e as criações vão acontecendo, conforme as ideias que vão surgindo, ora de um, ora de outro. Também, transformamos ou reconfiguramos, as ideias de um com as ideias do outro, com muita reflexão e boa discussão. Tudo acontece de forma muito natural! Não existe um processo rígido e etiquetado por etapas. Por exemplo, a experimentação e descoberta sonora pode acontecer antes ou, até mesmo depois, da concepção plástica. Há um grande compromisso entre a componente plástica e a sonora. O césar é mais responsável pela plástica e pela construção e o Samuel pela sonora e pela composição “musical” ou, como preferimos designar, diálogo entre objectos.

OparaSom Giratória, Noite Branca, Braga, 2019, © André Henriques

- A partir de que momento é que começam a dar importância a materiais, que normalmente as pessoas não dão e descartam?
Estranhofone - Desde muito novos damos importância a materiais ou objectos que as pessoas descartam, faz parte da nossa forma de ser e estar, somos reutilizadores por natureza, cada um à sua maneira ou de maneira igual. Ainda, independentemente, de um ser músico e o outro cenógrafo, sempre tivemos uma paixão pelo Som e, a partir do momento em que tomamos consciência do Som como elemento sempre presente, que nos rodeia constantemente, vemos qualquer material como uma fonte sonora. Por isso, esse momento aconteceu, com cada um de nós, faz muito tempo. O projecto Estranhofone, tem sido um momento das nossas vidas em que o processo de transformação de objectos mundanos em objectos artísticos, plásticos e sonoros, surge com outro intento e alento, enquadrado na definição e substância materna do projecto.

- Como é que fazem a recolha e escolha do material reciclado que utilizam?
Estranhofone - Antes de mais, os Estranhofones não se fazem apenas de material reciclado. Apesar de ser um aspecto importante na concepção dos objectos, não é nossa intenção mostrá-lo, de forma evidente, ao público, fazendo do material reciclado uma característica visivelmente marcante. Antes pelo contrário, visualmente e sonoramente, enquanto objecto artístico, os materiais encontram-se tendencialmente dissimulados, incluem-se e relacionam-se em prol de um corpo homogéneo. Quanto à recolha e escolha, pode funcionar por um processo deliberado e organizado ou de forma espontânea. Ora vamos à procura de material específico para a realização de uma ideia, ora recolhemos sem qualquer fim projectado e guardamos na perspectiva de um dia vir a ser usado. Estamos atentos aos objectos despejados, que se encontram um pouco por todo o lado e deslocamo-nos intencionalmente ou, simplesmente, por gosto, a sucatas, feiras e lojas de velharias.

Perdido por Achado, Noite Branca, Braga, 2019, © André Henriques


(...) "foi que um surdo é aquele que ouve com o corpo todo. Para mim foi fortíssimo. A partir desta premissa, por assim dizer, trabalhamos com frequências e tentamos perceber, ao longo do projecto, quais eram as frequências que eles ouviam melhor. Outro aspecto bastante interessante foi ter percebido que os surdos têm o sentido da visão bastante desenvolvido, portanto foi muito fácil dirigi-los. Foi bastante gratificante fazer este trabalho."

- A partir de quando deixaram o lado mais clássico da música para passarem a explorar outro tipo de sons?
Estranhofone - No nosso percurso artístico, tanto como criadores, como consumidores, nunca deixamos nada de lado, houve sempre algo que ficou, sensações, pormenores estéticos, instrumentos, composições, narrativas, da linha ao desenho, do som à música, sempre ficou algo daquilo por onde passamos. Nenhum de nós deixou, de todo, o lado clássico da música e da plástica. Temos uma forte inclinação para o experimentalismo, para a textura, para o geometrismo, para a abstração. Gostamos de cruzar disciplinas, e ler uma disciplina aos olhos da outra. Sempre exploramos sons, pelo fascínio, que ambos temos pelo Som. O Samuel foi, progressivamente, na vida e na profissão de músico explorando outros sons e, hoje, a sua paleta sonora é vasta. O César teve em Estranhofone, o impulso para voltar ao experimentalismo sonoro, que já havia realizado, por exemplo, na criação de Circuit Bending.

(Para Samuel Coelho) - Sabemos que já trabalhaste com grupos de crianças e adolescentes, nomeadamente com um grupo de surdos. De que forma é que se trabalha o som com pessoas com limitações auditivas? 
Samuel Coelho - Quando a Ondamarela (Ricardo Baptista e Ana Bragança) me convidaram para desenvolver este projecto para o Festival Tremor, nos Açores, uma das primeiras lições que aprendi, ao chegar e ter contacto com os surdos, foi que um surdo é aquele que ouve com o corpo todo. Para mim foi fortíssimo. A partir desta premissa, por assim dizer, trabalhamos com frequências e tentamos perceber, ao longo do projecto, quais eram as frequências que eles ouviam melhor. Outro aspecto bastante interessante foi ter percebido que os surdos têm o sentido da visão bastante desenvolvido, portanto foi muito fácil dirigi-los. Foi bastante gratificante fazer este trabalho.

- No contexto Estranhofone que projectos já fizeram, têm em mente ou alguns agendados?
Estranhofone - Estranhofone começou por ser, por si, o Projecto, tal como todos os planos mais ou menos definidos, faz em breve dois anos. Cresceu pelo encontro entre som marginal e objecto despejado, e afirmou-se como corpos/objectos sonoros que se constroem com uma consideração constante do seu comportamento ficcional. São objectos de temperamento cénico, objectos falantes, são personagens, sons, diálogos, momentos vivos e performativos. Ainda hoje chamamos Estranhofone por Projecto, no sentido de ser mais uma pasta das nossas vidas. Este Projecto apresentou-se tanto como performance, como exposição aberta à experimentação do público e percorreu vários “palcos”. Hoje, Estranhofone é uma definição, um lugar de criação com uma linguagem própria. Em Estranhofone, estamos a escrever e a esboçar projectos novos. Por exemplo, um deles, já concluído, para público infantil, designado Máquinas Colectoras de Sombra. São matérias em fase de pré-produção.

Som de Gaveta, Noite Branca, Braga, 2019, © André Henriques

"Estes são os objectivos, que procuramos atingir quando trabalhamos com comunidades, seja em Estranhofone, seja em outras intervenções e partilhas artísticas. Trabalhar, directamente, com comunidades, se é a melhor maneira para educar mentalidades, não sabemos. Acreditamos que seja um instrumento forte a ser usado, pois é, sem dúvida, uma boa forma de ajudar a educar ou a deseducar, dependendo do ponto de vista, pois, por vezes, é mais importante deseducar do que educar, ou seja, desformatar para promover abertura a outro pensar."


(Para Samuel Coelho) - Sabemos que gostas de cinema e que colaboras no M.O.D.S collective, que projectos já desenvolveram e esperam vir a desenvolver no futuro próximo?
Samuel Coelho - Sempre tive um gosto muito grande pelo cinema e sempre gostei da música improvisada, portanto decidi fundar o Mods Collective, com o objectivo de dinamizar esta vertente que não existia até então em Guimarães. Juntei músicos de diferentes backgrounds e a premissa do projecto é fazermos música improvisada para filmes.

Um dos projectos mais relevantes que desenvolvemos foi em Valletta (Malta), para a Capital Europeia da Cultura, onde escrevi uma banda sonora para um filme de um realizador maltês - Cecil Santariano - que foi pioneiro do cinema em Malta, premiado internacionalmente.

OparaSom 1, Noite Branca, Braga, 2019, © André Henriques

- Quanto tempo em média demoram a construir um Estranhofone?
Estranhofone - O tempo de construção oscila, pode demorar um dia, uma semana, um mês ou até mais, consoante um conjunto de condições. Se a ideia é mais simples ou complexa, se o material é acessível ou difícil de conseguir, se já o temos ou não, se tecnicamente é mais simples ou requer mais trabalho, se reunimos as condições de execução, como ferramentas, espaço para a construção e conhecimento técnico ou se temos que recorrer a um serviço de fora. Depende ainda do orçamento e da disponibilidade do mesmo, assim como da agenda que cada um tem.

Som de Gaveta e OparaSom 2, Mercado dos Objectos Incríveis, 2018

- O que valorizam ou valorizaram mais do vosso trabalho com comunidades? E será essa uma das intervenções com mais resultados, isto é, trabalhar de perto e directamente com a comunidade será a melhor maneira para educar mentalidades? 
Estranhofone - Quando desenvolvemos trabalhos com a comunidade temos preocupações e objectivos de valor equiparável. Numa primeira fase, que as pessoas se sintam integradas socialmente e artisticamente, ou seja, no todo social e na parte da criação. Numa segunda fase, que se possam descobrir como indivíduos sensíveis, críticos e criativos. Numa terceira fase, que se possam descobrir como indivíduos suscetíveis a outras interpretações e valores para com o mundo e o homem. Estes são os objectivos, que procuramos atingir quando trabalhamos com comunidades, seja em Estranhofone, seja em outras intervenções e partilhas artísticas. Trabalhar, directamente, com comunidades, se é a melhor maneira para educar mentalidades, não sabemos. Acreditamos que seja um instrumento forte a ser usado, pois é, sem dúvida, uma boa forma de ajudar a educar ou a deseducar, dependendo do ponto de vista, pois, por vezes, é mais importante deseducar do que educar, ou seja, desformatar para promover abertura a outro pensar.

Texto e entrevista: Priscilla Fontoura
Entrevistados: Samuel Coelho César Estrela