O jazz é um mundo que parece infinito, não só pelas propostas possíveis que existem, mas pela liberdade que a improvisação oferece face a...

Troll's Toy: fazer música com honestidade é a melhor forma de demonstrar respeito pelo público

O jazz é um mundo que parece infinito, não só pelas propostas possíveis que existem, mas pela liberdade que a improvisação oferece face a qualquer ideia que possa surgir. Tudo é uma possibilidade.

Jorge Loura é guitarrista da banda Troll’s Toy e encontra nesse grande mundo a porta aberta para experimentar novas sonoridades. Tem vários projectos, a essa lista juntam-se os 47 de Fevereiro e os Souq. Esta última existe há alguns anos com dois álbuns editados. A caminho do terceiro álbum, parece que Jorge Loura não tenciona parar, é compromissado com os projectos que cria, não obstante o tempo que demora para editar um novo disco. Colabora e colaborou com vários músicos e bandas, entre os quais os memoráveis Zen. Inserido em projectos com mais ou menos projecção, mantém-se ocupado pela necessidade artística, quando cria um projecto novo nunca procura fazer o que já fez, auto-intula-se “esquizofrénico musical” porque não consegue parar de materializar as ideias que o invadem. 

"Prefiro dizer que tenho muita sorte em ter os meus músicos preferidos por perto e por isso não vejo necessidade de procurar outros."

 © Rita Andias

- És guitarrista barítono no novo projecto musical Troll’s Toy. Partiram grande parte de um concerto improvisado, em Aveiro, para chegarem à conclusão de que valia a pena passar para registo. Como foi passar de um concerto para um estúdio e pegar no que foi criado por improviso para algo mais concreto?
Foi um processo que, tal como quase tudo na banda, não estava planeado. Uma pequena correcção: o concerto não foi 100% improvisado. Isto porque para esse concerto (no Festival Jazz Sunset E Meia) decidimos preparar duas ou três ideias sobre as quais iríamos improvisar em certos momentos e que poderiam servir de “tábua de salvação”. Acabámos por utilizar apenas uma delas. Portanto, em rigor o concerto terá sido apenas 90% improvisado. O que mudou depois foi que, quando decidimos ir para o estúdio achámos que não seria mau levar algumas ideias mais concretas, mais uma vez para o caso de a inspiração não aparecer nos dias e horas combinados. Passámos para o papel as ideias que achámos mais interessantes da gravação do concerto e, já no estúdio, fizemos 3 takes de cada tema com abordagens totalmente diferentes entre eles. Algumas chegaram ao álbum, como “Mandatory Eight Count” ou “Aveiro”, outras ficaram pelo caminho mas ficaram gravadas e não esquecidas.

- Há outros membros dos Souq que formam os Troll’s Toy. Passar de uma linguagem com uma identidade como a dos Souq para criar uma outra diferente deve-se essencialmente a uma actualização de referências, estejam elas directa ou indirectamente ligadas à música, ou parte mesmo de uma nova necessidade de criar outro mundo?
Mais uma vez: acaso. Na altura da pré-produção de “The Dynamite Sisters”, 2º álbum de Souq, comprei uma guitarra barítono sem ter propriamente um uso planeado para ela, mas já com a ideia de que gostava de fazer uma banda instrumental com ela. Sendo que a guitarra barítono é um instrumento grave que podia de certa forma fazer o papel do baixo (sem tentar a impossível tarefa de o substituir), foi só perceber que tinha ali à mão um saxofone tenor (Gabriel Neves) e uma bateria (João Martins). Não fizemos contas às tessituras dos instrumentos, e sabíamos que à partida nem a guitarra barítono nem o sax tenor podem suprimir a falta do baixo. Encarámos isso não como uma limitação mas como mais um desafio, tínhamos que fazer resultar assim.



"Quem se acha mais inteligente do que o público são muitos agentes, programadores e gatekeepers nos mais variados sectores que dizem coisas como 'o que tu fazes é bom, mas o público não vai compreender'. E mesmo esquecendo a música enquanto forma de arte, não há forma de eu compreender o raciocínio a favor do negócio: o Miles Davis fez milhões de dólares, o Frank Zappa fez milhões de dólares, os Tool fazem milhões de dólares. Quanto à 'preguiça musical', porque não? Há espaço para tudo e as coisas simples também dão cor à vida. Não temos que beber vinho de reserva todos os dias, também sabe bem beber uma cerveja, um refrigerante ou um simples copo de água, tal como nós somos capazes de fazer uma viagem para um concerto a ouvir Foo Fighters ou Justin Timberlake."

- Achas difícil encontrar ligação com músicos com os quais não tens grande interacção e por isso colaboras com os “teus irmãos”, ou achas fácil encontrar essa correspondência?
Adoro tocar com pessoas que conheço menos bem, embora por falta de tempo não o faça assim tanto hoje em dia. Eu não diria que tocar com quem toco é uma escolha. Prefiro dizer que tenho muita sorte em ter os meus músicos preferidos por perto e por isso não vejo necessidade de procurar outros. 

© Ana Grave

- Neste momento, existem mais projectos de jazz fusão em Portugal. Achas que agora com alguns nomes do jazz na ribalta, também motivado pela colaboração entre músicos estrangeiros e nacionais, alguma coisa mudou, ou o jazz continua a ser um nicho para outro nicho? 
Eu diria que não sou a melhor pessoa para se fazer essa pergunta, pois o meu percurso não tem sido feito propriamente numa imersão no jazz. Quando na introdução falam em “esquizofrenia musical” também é isso, e eu responderia da mesma forma se falássemos de rock. Souq é uma banda de rock mas é um melting pot de linguagens cruzadas, 47 de Fevereiro o mesmo mas cruzando outras linguagens, e em Troll’s Toy nós próprios temos dificuldade em associar a banda a uma palavra ou a uma única linguagem. Costumamos dizer, e não necessariamente a brincar, que tanto tocamos num festival de jazz (e temos tocado em alguns) como num festival de rock e adoraríamos ser convidados para festivais de metal! Dito isto, temos dois elementos que tocam em fabulosos projectos de jazz. O João Martins faz parte do Phantom Trio e acabou de lançar o primeiro álbum do quarteto em nome próprio, do qual também faz parte o Gabriel Neves. E ambos tocam na banda do Hugo Carvalhais. Sou um fã de todos os referidos. No entanto não nos consideramos como fazendo parte de um nicho, consideramos que fazemos música para nós e para as pessoas. Não acreditamos em gavetas musicais muito bem arrumadinhas nem em rótulos ou estudos de mercado sobre um grupo tão heterogéneo quanto o denominado “grande público”. Acreditamos que toda a música feita com honestidade, tendo suficiente exposição, tem o potencial de agradar a qualquer pessoa de qualquer idade ou condição social. Se o jazz ou qualquer outro género é um nicho, quem faz a música tem a mais baixa percentagem de responsabilidade nesse facto. 

- O jazz fusão, como outros géneros musicais, tem na sua índole uma forma desafiante de criar, talvez por desviar-se do cordeirismo sonoro e do cliché para procurar ambientes que possam descrever imaginários com características próprias. Não se sabe explicar muito bem porquê, mas há e sempre houve pessoas que procuram na preguiça musical a satisfação das suas necessidades musicais e há outras que fogem disso, porque sentem outras exigências. Tal como fazer música, há quem procure batidas fáceis para agradar públicos, e há quem se esteja a marimbar para o público, porque coloca em primeiro a ideia que não desvirtua um sentido quase ético. Qual o caminho para educar públicos e alargá-los a novas abordagens musicais? 
Sem querer acabei por responder a uma boa parte na questão anterior. Tentando não repetir ideias, o facto é que não nos estamos a marimbar para o público, bem pelo contrário. Fazer música com honestidade é a melhor forma de demonstrar respeito pelo público e, simultaneamente, “educar” (à falta de melhor termo) quem antes não tenha estado exposto a algo parecido. Não fazemos a música que fazemos com um sentido ético, mas sim porque é aquilo que nos excita. E acreditamos firmemente que se nos excita, então também vai excitar o público. Porque nós antes de sermos músicos também somos público, e não nos achamos assim tão especiais ao ponto de pensar que pessoas iguais a nós não vão compreender aquilo que fazemos. Quem se acha mais inteligente do que o público são muitos agentes, programadores e gatekeepers nos mais variados sectores que dizem coisas como “o que tu fazes é bom, mas o público não vai compreender”. E mesmo esquecendo a música enquanto forma de arte, não há forma de eu compreender o raciocínio a favor do negócio: o Miles Davis fez milhões de dólares, o Frank Zappa fez milhões de dólares, os Tool fazem milhões de dólares. Quanto à “preguiça musical”, porque não? Há espaço para tudo e as coisas simples também dão cor à vida. Não temos que beber vinho de reserva todos os dias, também sabe bem beber uma cerveja, um refrigerante ou um simples copo de água, tal como nós somos capazes de fazer uma viagem para um concerto a ouvir Foo Fighters ou Justin Timberlake.

"Cresci nos anos 90, e aos domingos pela hora do almoço toda a gente ligava a TV para ver o Top+. A música era apresentada segundo um critério tão discutível quanto qualquer outro (neste caso era o top dos discos mais vendidos na semana anterior), mas a verdade é que em menos de uma hora ouvíamos desde Céline Dion e Kenny G até Peter Gabriel ou Pantera, e quem não gostava de uns esperava 4 minutos para ouvir o que vinha a seguir. Tudo dentro do universo pop-rock, é certo, mas sempre era uma dieta mais variada. Agora com os algoritmos vamos sendo cada vez menos expostos a realidades diferentes (e isto aplica-se tanto na música como na política ou outra coisa qualquer)."




- O tema Mandatory Eight Count é puramente um tema caótico que remete para bandas como os húngaros Jü, os italianos Zu, os suecos Fire! Vocês juntam jazz, com rock, com progressivo com géneros que procuram trazer um mundo novo e pujante, carregado de emoção e jogos que brincam com ritmos. Sentes pertença quando ouves essas bandas referidas, ou achas que o sentido de pertença não se encontra no género que se cria, mas é mais uma questão de identificação com o músico? 
Admito que só conhecia os Zu e sempre gostei muito. Jü e Fire! estou a conhecer (e a gostar) graças a vós e desde já agradeço a partilha. Quanto ao sentimento de pertença remeto para a resposta anterior quando dizia que nos sentimos iguais ao público. Mais do que sentir que pertencemos a um grupo com estas e outras bandas, arrisco dizer que essas bandas fazem música com a mesma atitude e honestidade. Saber que há muito mais gente a fazer isto faz-nos sentir que não estamos a inventar a pólvora ou que somos uns loucos a remar contra uma maré de inevitabilidade.

© Diana Carapuço

- Como olhas para o futuro da música, um mais “separatista” ou um mais ecléctico e aberto a novas propostas? Isto é, um mundo separado pelos interessados que vão à procura e pretendem sempre consumir de uma maneira ética e consciente, e por outros que apenas têm nas plataformas digitais o entretenimento para passar o tempo? 
O futuro da música é uma absoluta incógnita. O “separatismo” tem prós e contras. É maravilhoso termos acesso personalizado a toda a música que queremos ouvir, e a partir daí ter sugestões de música relacionada e seguir esse caminho (deixo para outras núpcias a discussão essencial sobre a sustentabilidade económica deste novo paradigma). Mas será isso uma coisa assim tão boa e necessária? Acabei de descobrir Jü e Fire! graças a esta conversa convosco, não precisei de um algoritmo. Detesto o “antigamente é que era bom”, mas não resisto a lembrar que sempre se descobriu música antes das plataformas digitais, fosse através dos amigos, dos media ou lendo entrevistas com os nossos ídolos. Cresci nos anos 90, e aos domingos pela hora do almoço toda a gente ligava a TV para ver o Top+. A música era apresentada segundo um critério tão discutível quanto qualquer outro (neste caso era o top dos discos mais vendidos na semana anterior), mas a verdade é que em menos de uma hora ouvíamos desde Céline Dion e Kenny G até Peter Gabriel ou Pantera, e quem não gostava de uns esperava 4 minutos para ouvir o que vinha a seguir. Tudo dentro do universo pop-rock, é certo, mas sempre era uma dieta mais variada. Agora com os algoritmos vamos sendo cada vez menos expostos a realidades diferentes (e isto aplica-se tanto na música como na política ou outra coisa qualquer). É preciso estarmos muito conscientes e atentos, e o espírito crítico é mais essencial hoje do que nunca. Quanto à questão ética, é essencial alertar o público para o facto de que os artistas não estão a ser pagos pelas plataformas digitais, e por isso é necessário encontrar uma forma de financiar a música de que gostamos. Se o CD ou o vinil são suportes anacrónicos, então há que comprar uma t-shirt ou uma caneca de café com a imagem da banda. Não condeno quem consome música através das plataformas digitais (que são uma ferramenta brilhante para o consumidor), mas é necessário que seja bem claro para todos que ou se financia o artista de alguma forma, ou então ele não terá dinheiro para fazer o próximo disco. Isto a médio/longo prazo pode levar à morte da música enquanto forma de arte.

- Agora com uma maior democratização musical, em que é possível tocar em qualquer parte do mundo, onde seria a tua Meca ou a tua Terra Sagrada para tocares com Troll’s Toy?
O facto de eu ter demorado algum tempo a responder à entrevista torna esta pergunta infelizmente anacrónica! Para informação dos leitores e em defesa de Acordes de Quinta, esta entrevista foi enviada antes de ser decretada a quarentena, e quando tive tempo para responder já estávamos em “full lockdown”. Não temos propriamente um lugar de sonho para tocar, para nós o próximo palco é sempre o lugar de sonho porque é aí que queremos estar. Estamos um pouco frustrados porque estava planeada para o outono deste ano uma tour que ia passar por Áustria, Alemanha, UK e Espanha. Muito dificilmente vai acontecer nas datas planeadas, mas certamente acontecerá em tempos melhores. Agora, se nos é permitido sonhar, gostávamos muito de tocar em todo o mundo, e tanto nos dá se tocamos no Budokan em Tóquio para 15.000 pessoas ou no Baked Potato em Los Angeles para 70. Não somos esquisitos.

Texto e Entrevista: Priscilla Fontoura
Entrevistado: Jorge Loura, Troll's Toy
Imagens: Rita Andias, Ana Grave, Diana Carapuço