João Vairinhos , um dos membros fundadores dos atmosféricos LÖBO , e músico ao vivo de projectos como MURAIS , Ricardo Remédio ou Wildno...

Vala Comum: um single idealizado antes da pandemia. João Vairinhos, membro fundador dos Löbo, lança Vénia.

João Vairinhos, um dos membros fundadores dos atmosféricos LÖBO, e músico ao vivo de projectos como MURAIS, Ricardo Remédio ou Wildnorthe, disponibilizou Vala Comum, o single de avanço do seu primeiro EP a solo, em todas as plataformas digitais a 15 de Abril. A versão digital do EP Vénia foi disponibilizada no dia 29 de Abril em todas as plataformas digitais. O disco foi misturado e masterizado por Pedro Barceló, e conta com as participações de Sérgio Prata Almeida (Don't Disturb My Circles) e Ricardo Remédio (LÖBO, RA) em dois temas.

As edições em formato físico têm o selo da Raging Planet, Regulator Records e Ring Leader e serão disponibilizadas em data a anunciar.

© Pedro Roque (Eyes of Madness)

João como te encontras nestes dias de pandemia?
Actualmente tenho estado a trabalhar a partir de casa e já vou conseguindo gerir melhor a alteração drástica de rotinas que este contexto impôs. Tenho tentado produzir música para me alienar um pouco do contexto e tentar manter a sanidade mental, mas não tem sido fácil.

És membro fundador de Löbo, banda que já tem um lado experimental bem acentuado, e agora lanças o teu primeiro EP com três temas bastante imersivos e cinematográficos. Como se processou a criação do EP, quanto tempo levou?
Comecei a compor estas músicas pouco tempo depois de sair a “Eternos São Os Corvos”. Essa música estabeleceu um ponto de partida para o Vénia, pois quando comecei a compor o EP, procurei estabelecer uma espécie de continuidade do ambiente dessa música. A “Chegaram” tem um ou dois elementos da “Eternos São os Corvos” de forma propositada (as vozes radiofónicas e uns efeitos), que serviram para “formalizar” essa transição.

A construção das músicas partiu sempre de uma melodia ou algo que tinha idealizado a partir de imagens dos livros que estava a ler na altura. Quando conseguia criar o que pretendia, ou algo próximo do que tinha imaginado, tentava dar um seguimento à ideia base e criar uma “narrativa” que fizesse sentido, quase como se estivesse a fazer um puzzle e a construir as peças do mesmo em simultâneo. 
O disco demorou cerca de um ano a ser composto e uns quatro a cinco meses a ser misturado e masterizado, porque, para além dos outros projectos musicais que temos, eu e o Pedro Barceló (que me ajudou na mistura e fez a masterização) temos empregos e outros compromissos e, por razões óbvias, não foi possível dedicarmo-nos a tempo inteiro a este disco. Durante a mistura, fiz alguns arranjos adicionais em algumas partes e ainda pedi a colaboração do Sérgio Almeida (Don’t Disturb My Circles) na primeira parte da Vala Comum e do Ricardo Remédio na segunda parte da Vénia, com aquela serra áspera característica dele que adoro, o que fez com que demorasse mais um pouco, mas valeu a pena a espera, pois ficou mais próximo do que tinha idealizado. 

Era algo que adoraria experimentar. Pode parecer um paradoxo, mas uma das motivações que me levou a fazer música em nome próprio, prende-se precisamente com a minha vontade em colaborar livremente com outros artistas, ou em projectos com âmbitos distintos do que já tinha feito até agora. A colaboração mais próxima desse contexto que tenho em curso é a produção da sonoplastia de algumas peças multimédia, para um projecto de remusealização.


O teu som tem uma componente tendencialmente cinematográfica, não trabalhas só a electrónica instrumental, mas também acrescentas sons mais humanos sem recurso a voz clássica, qual a tua ligação ao cinema?
Não me considero um cinéfilo. Gosto de ver um bom filme, mas não tenho uma ligação muito profunda com o cinema. Não sou aquela pessoa que vai procurar constantemente novos filmes, ou conhecer o trabalho em particular do realizador x ou y. Tenho as minhas preferências e referências, como toda a gente. Nos últimos anos comecei a tomar muita atenção às bandas sonoras dos filmes e a ter interesse na forma como alguns compositores desses trabalhos abordam a estrutura das músicas, e como conseguem criar sentimentos de suspense ou expectativa, através da sobreposição de efeitos sonoros simples ou meros silêncios ou quebras de intensidade. Penso que isso teve alguma influência na forma como abordei esta experiência.

No que diz respeito ao acréscimo de sons humanos, nunca quis que este disco fosse um disco meramente eletrónico, portanto a ideia de acrescentar esses sons orgânicos visou dar-lhe um ambiente mais pesado, digamos assim. 

© Pedro Roque (Eyes of Madness)

Há certas partes que tanto levam a Dead can Dance, perto do fim do tema “Chegaram”, e a Coil. O lado mais plástico e industrial interessa-te mais que o cru e directo? Como se processa estruturalmente a tua composição, trabalhas com vários samples e camadas?
Nos dias que correm, interessam-me ambos os lados que referes e não tenho um que valorize mais. Aprendi a gostar de tocar música no contexto punk/hardcore e esse ainda é um mundo com o qual vibro e tenho interesse, portanto o som cru e directo é uma dimensão estética que faz parte das minhas referências. A primeira parte da Vala Comum é um exemplo disso, pois apesar de ter sido criada com recurso a elementos electrónicos, procurei dar-lhe um som áspero mais próximo da sonoridade crust, com a escolha de determinados sons e algumas opções de mistura. Apesar de gostar de música com essa estética, sempre tive curiosidade em descobrir outros universos, não só por interesse pessoal, mas também para levar influências diferentes para os projectos onde estava/estou envolvido. Ao longo do tempo, fui ganhando o gosto por sonoridades mais industriais e electrónicas, e essa mistura de influências tem um impacto óbvio nas músicas que faço hoje, seja a fazer as percussões para LÖBO, seja a fazer remixes com ritmos mais “dançáveis” (como as remisturas de FOREST FIRES), seja a fazer o que fiz neste disco.

Relativamente à segunda parte da tua questão, este disco foi feito exclusivamente com recurso a meios digitais, à excepção do contributo do Ricardo Remédio que utilizou um sintetizador Vírus para aquela serra na Vénia. Como referi anteriormente, parti sempre de uma ideia melódica para começar e à medida que a coisa ia avançando, fui acrescentando os sons orgânicos samplados e posteriormente adulterados (sinos, marchas militares, respirações ofegantes, máquinas de código de morse, vozes) e criando outras partes com os instrumentos digitais (coros, violinos, violoncelos e sintetizadores).


Como se dá a participação da Mariana Vilhena para o teledisco Vala Comum? É também um tema bastante envolvente e inevitavelmente leva à criação de uma abordagem visual. Deste algumas dicas, ou a Mariana é que criou todo o imaginário? 
Conheci o trabalho da Mariana Vilhena através do Ricardo Remédio, que me mostrou algo que ela tinha feito para as performances do Kara Konchar e um preview de outra coisa qualquer que já nem lembro. Quando vi o tipo de imagens utilizadas, pensei imediatamente na Vala Comum e como o sentido rítmico e a sobreposição de imagens poderiam funcionar bem com a estrutura da música. Entrei em contacto com ela, enviei-lhe as demos do EP, a capa, um texto e algumas orientações do que tinha em mente. A Mariana aceitou e passado pouco tempo enviou-me o primeiro draft do vídeo que basicamente já era 80% do que está na versão final, portanto ela acertou em cheio naquilo que eu pretendia.

© Pedro Roque (Eyes of Madness)

Já pensaste em colaborar com realizadores? Acho que as tuas composições são perfeitas para filmes de realizadores como Gaspar Noé, David Cronenberg ou até Nicolas Winding Refn. Estarei enganada?
Era algo que adoraria experimentar. Pode parecer um paradoxo, mas uma das motivações que me levou a fazer música em nome próprio, prende-se precisamente com a minha vontade em colaborar livremente com outros artistas, ou em projectos com âmbitos distintos do que já tinha feito até agora. A colaboração mais próxima desse contexto que tenho em curso é a produção da sonoplastia de algumas peças multimédia, para um projecto de remusealização.


Bem, pode parecer propositado, mas este disco ter saído nesta altura foi pura coincidência. No dia em que estávamos a carregar o single da Vala Comum para as plataformas digitais, saiu uma notícia que referia que, em alguns locais, estavam a ser utilizadas valas comuns para enterrar pessoas. Fiquei arrepiado com a coincidência. É algo que nunca pensei viver e para o qual a maior parte das pessoas certamente não estava preparada, mas, apesar do meu pessimismo, acho que vamos conseguir ultrapassar este contexto.

A composição do disco ocorreu numa fase em que leste várias obras de ficção que remetiam para contextos assentes na opressão (ideológica, material, científica, amorosa) e partiste desses exemplos para musicar o imaginário que foste criando à volta das narrativas desses livros, o interessante dos livros de ficção é mesmo a abertura que nos dão para imaginarmos o que quisermos. Esse mundo sonoro distópico que criaste enquadra-se perfeitamente nos dias que vivemos, tanto que o título “Vala Comum” chega a ser assustador tendo em conta este cenário todo. Como olhas para este nosso momento? Antes esta possibilidade parecia ficcional e agora é mais real do que nunca.
Bem, pode parecer propositado, mas este disco ter saído nesta altura foi pura coincidência. No dia em que estávamos a carregar o single da Vala Comum para as plataformas digitais, saiu uma notícia que referia que, em alguns locais, estavam a ser utilizadas valas comuns para enterrar pessoas. Fiquei arrepiado com a coincidência. É algo que nunca pensei viver e para o qual a maior parte das pessoas certamente não estava preparada, mas, apesar do meu pessimismo, acho que vamos conseguir ultrapassar este contexto. 

Independentemente disso, sinto que há países que não têm líderes à altura do cargo que desempenham e que tratam o seu povo com desdém, quer pela forma como respondem quando questionados pelo número de mortes, quer pela desvalorização do conhecimento médico e científico que é, sem sombra de dúvidas, a melhor ferramenta para chegarmos a algum lado. Essas pessoas já estavam nesses cargos antes desta pandemia, por isso em alguns aspetos, podemos dizer que já se viviam algumas distopias. Para além da questão da saúde pública, teremos um grande desafio relacionado com o desemprego que este contexto vai criar nos vários setores da sociedade. Obviamente que é um problema transversal e que todas as áreas terão que ter soluções dignas, mas por questões de afinidade tenho estado mais atento e lido mais sobre a área cultural, designadamente a área da música e é com alguma preocupação que vejo uma aparente ausência de estratégia das nossas instituições neste âmbito.

© Pedro Roque (Eyes of Madness)

Acreditas que as expressões podem ser constantemente recriadas pela mistura de várias referências, quase como andassem em modo loop mas com laivos diferentes de passados já criados? Não me refiro às artísticas, poderão ser outras mais relacionadas ao inconsciente. A tua abordagem, por exemplo, seria uma reconstrução futurista de obras de Kafka em que se imagina um futuro distópico e surreal, mas que é meramente metafórico e alegórico à descrença na humanidade. Concordas?
Acredito que quando estamos a criar algo, teremos certamente influências que, apesar de inconscientes, sobressaem no produto final. Por acaso o Kafka foi um autor importante para mim, pois A Metamorfose deve ter sido um dos primeiros livros que li mais a sério. Sou um pessimista crónico, portanto acertaste em cheio na descrença na humanidade. Apesar de ter utilizado o “ambiente” de algumas distopias como ponto de partida, não procurei fazer uma reconstrução musical do Kafka em particular, mas percebo que seja percecionada como uma influência ou referência em torno do disco.


O que tens planeado para o futuro se é que se pode vislumbrar um futuro a longo prazo. 
Os meus planos são continuar a fazer música e a colaborar com outros artistas, quer como baterista, quer como produtor. Tenho estado a participar activamente no disco novo do Ricardo Remédio com percussões e alguns efeitos sonoros, e tenho outras colaborações em curso, cujos resultados serão certamente diferentes do que fiz neste disco.

Gostarias de deixar alguma mensagem a quem te lê e ouve?
Espero que gostem do disco e, caso tenham interesse, passem pelos sites da Raging Planet, Ring Leader e Regulator Records e espreitem os catálogos das editoras. Pode ser que encontrem música que vos ajude a passar os dias que correm.

Texto e Entrevista: Priscilla Fontoura
Entrevistado: João Vairinhos
Imagens: Pedro Roque (Eyes of Madness)
Vídeo: Mariana Vilhena; Música: João Vairinhos; Sintetizador adicional gravado por Sérgio Prata Almeida
Este texto não foi escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico