© Priscilla Fontoura Introdução Às vezes cai-se na esparrela em pensar-se que certo tema é original de quem o interpreta ou de que...

Versões que não ficaram aquém dos originais

© Priscilla Fontoura

Introdução
Às vezes cai-se na esparrela em pensar-se que certo tema é original de quem o interpreta ou de quem o toca, mas nem sempre essa premissa corresponde à verdade. Muitos músicos, também fãs de outros, tocaram versões de originais - tão perfeitamente - que muitas vezes parece que tais temas foram escritos pelos mesmos. Damos alguns exemplos tão ou mais emblemáticos que os originais e que perdurarão na intemporalidade da história da música.  

Jeff Buckley e Nina Simone - Lilac Wine.
Tanto as líricas quanto a canção foram escritas por James Shelton. O tema foi apresentado no musical Dance me a Song. Tanto Jeff Buckley quanto Nina Simone interpretaram a canção como se a tivessem escrito. Serve de exemplo a versão que se sobrepõe à beleza do tema original. Mesmo após a intensiva exploração do tema por vários músicos, a versão de Jeff Buckley de Hallelujah, original de Leonard Cohen, continua a ser das mais distintas e célebres.

Marduk, Oil on Panel. Ironicamente os Marduk que se consideram ideologicamente satânicos ou com valores mais extremistas, fazem uma versão dos cristãos Woven Hand. Primeiro porque consideram ser um bom tema, segundo porque é desafiante pegar em algo análogo ao que fazem musical e ideologicamente. Oil on Panel é um tema do segundo álbum Consider the Birds, um disco que, para mim, se distingue do género e que perdurará nas preciosidades da história da música folk. 

16 Horsepower, Cept You. Podia dizer-se que este tema é original do líder David Eugene Edwards, mas não. O original foi escrito e composto pelo rei do folk Bob Dylan. Quanto a mim sobrepõe-se ao original por todo o drama incutido que David Eugene Edwards emprega a quase todos os seus temas. É intenso, espiritual e honesto. Todo o arranjo que mistura sons originais do velho oeste com rock remete para o cruzamento entre ameríndios e povos europeus que viajaram até as américas para se fixarem. 

Charles Bradley, Changes. Este tema interpretado por Charles Bradley é de arrepiar. O músico conseguiu elevar este tema a outro patamar pela intensidade e sinceridade com que canta cada palavra. A melodia do piano da canção foi composta pelo guitarrista Tony Iommi, guitarrista dos icónicos Black Sabbath. A balada foi escrita e inspirada no término da relação de Bill Ward com a sua primeira mulher. As letras foram escritas pelo baixista Geezer Butler. O tema inclui-se também na série Big Little Lies

Fire! Orchestra, Blue Crystal Fire. Os Fire! mostram como desconstruir uma canção folk com mestria e criatividade. Esta versão arrepia a quem conhece o tema original. A original é, para mim, sem dúvida uma das canções mais belas que alguma vez ouvi. Tem o toque límpido, honesto, barroco e folk. O tema original é do grande mestre da técnica finger-picking Robbie Basho, tocador de guitarra de 12 cordas que tentou empregar ao som uma estética clássica da música indiana (raga), e consta no álbum Visions of the Country. Basho utilizava escalas orientais e juntava também as influências europeias da música clássica, blues e baladas do folk americano. Apenas o toque do seu dedilhar e o entoar da sua voz celebravam a magia da natureza. O tema dos Arborea é outro exemplo, mas é mais um tributo do que uma versão. 

Massive Attack, Teardrop. Este é outro tema que tal... A banda de trip hop lançou enquanto segundo single do terceiro álbum, Mezzanine, em 1998. As letras e o tema foram construídos pela vocalista dos célebres Cocteau Twins, Elizabeth Fraser. O tema foi lançado em vários programas de televisão e também na série House. 

Deftones, Chaffeur. O original pertence aos Duran Duran, do segundo álbum Rio, lançado pela Capitol-EMI, em Maio de 1982. As letras foram escritas por Simon Le Bon e serviria de poema, mesmo antes do álbum Rio ter sido lançado. As letras de Le Bon datam 1977. Incluem-se também os temas Sound of Thunder, Night Boat and Careless Memories. Os Deftones, enquanto banda de rock, dão um cunho mais pesado ao tema.

José González, Heartbeats. O músico também sueco, além de tocar guitarra magistralmente e dominar o dedilhado de modo peculiar, ficou nos holofotes pela sua versão do tema Heartbeats dos irmãos The Knife. Foi single do segundo álbum Deep Cuts lançado na Suécia em Dezembro de 2002. Os Royal Teeth também fazem uma versão interessante instrumentalmente falando com um laivo banda-sonora da série Stranger Things, mas fica um quanto aquém vocalmente, uma vez que a voz de Karin Dreijer (The Knife) pesa pela sua singularidade e bela estranheza.

Earthless, Purple Haze. Como é possível? Já tive o prazer de ver Earthless, e a primeira vez que os vi fiquei abismada por tocarem mais de duas horas. E quem conhece Earthless sabe o que isto significa. Os californianos fazem uma excelente versão de Purple Haze, tema emblemático escrito por Jimi Hendrix em 1967. Mais do que uma versão é uma homenagem ao guru do rock! 

Johnny Cash, Hurt. O original dos Nine Inch Nails (NIИ) consta no segundo álbum da banda, Downward Spiral, lançado em 1994, escrita por Trent Reznor. O tema ganhou um Grammy de melhor tema rock em 1996. Em 2002, Johnny Cash fez uma versão de Hurt que recebeu críticas positivas da comunidade da música. Reznor teceu elogios à interpretação de Cash pela honestidade que se entregou ao tema, ao ponto de admitir que a música já não lhe pertencia. 

Ugly Kid Joe, Cat's and the Cradle. Quantas vezes ouvimos este tema na MTV, nos anos 90? Mal sabíamos que o tema não era um original dos Ugly mas de Harry Chapin, um tema original folk rock perfeito para o desfecho de um filme independente americano. A canção foi escrita em 1974 para o álbum Verities & Balderdash e é uma referência para a música folk. 

Regina Spektor, Little Boxes. Aqui tanto a versão quanto o tema original escrito pela excelente Malvina Reybolds em 1962 são medidos com o mesmo peso e medida. São os dois coloridos e bem dispostos. O tema tornou-se conhecido pela voz do amigo de Malvina, o emblemático cantautor activista Pete Seeger, e voltou a ser ouvido por grandes massas quando foi tema para o genérico da série Weeds em 2005. O conteúdo da canção é uma sátira política sobre o desenvolvimento dos subúrbios, associado ao conformismo das atitudes da classe média, é também uma ironia às habitações "encaixotadas" feitas em série (tract housing) com little boxes (caixinhas) de cores diferentes como todas feitas de ticky-tacky e que parecem todas iguais. Ticky-tacky é uma referência ao material de má qualidade, usado na construção em série dessas casas, semelhante ao que aconteceu em Portugal na década de oitenta.

Mark Lanegan, Flatlands. Este tema foi composto por Chelsea Wolfe, tema que se inclui no álbum Unknown Rooms. No entanto, o que Mark Lanegan apresenta não é bem uma versão mas uma homenagem à compositora. Tanto o original quanto a versão são fortes e densas. Apenas a uma guitarra folk, preenchidas a uma só voz, a magia acontece de uma forma simples e despida de artifícios. É possível ouvir as duas vozes juntas, misturadas por um fã dos dois músicos.

Nirvana, The Man Who Sold the World. Este tema dispensa apresentações, todos sabemos que faz parte do repertório Nirvana, MTV Unplugged. Composta por David Bowie, inclui-se no álbum homónimo lançado em 1970. Os Nirvana também fazem nesta sessão uma versão do Where did you Sleep Last Night de Leadbelly

Foo Fighters, Down in the Park. Os Foo Fighters, tal como o exemplo referido de Deftones, transformam um tema electrónico num rock mais orgânico. Down in the Park foi escrito pela banda Tubeway Army com a participação de Gary Numan. Foi single do segundo álbum Replicas. O tema foi escrito e produzido por Gary Numan e, apesar de não ter sido um sucesso, continua a ser um tema regular nos concertos de Numan. Pelos vistos os Foo Fighters gostam do tema e fizeram uma versão do mesmo.

Luna, Bonnie and Clyde. O tema foi escrito por Serge Gainsbourg e interpretado pelo músico e pela actriz da nouvelle vague Brigitte Bardot. Aborda a história dos fora de lei Bonnie and Clyde, e é baseado no poema inglês escrito por Bonnie Parker semanas antes dela e Clyde Barrow terem sido alvejados, intitulado The Trail's End. O tema original tem elementos mais sedutores não fosse a voz inigualável de Gainsbourg "gravemente" sensual. 

Soap and Skin, What's Up. O tema original do tema tão ouvido nos anos '90 de 4 Non Blondes foi há pouco tempo gravado por Soap and Skin aka Anja Plaschg e pela sua irmã Evelyn Plaschg. O tema é mais electrónico e é todo ele construído com base na identidade que Soap and Skin tem definido para o seu trabalho. What's Up? foi escrita por Linda Perry e a produção ficou a cargo de David Tickle. Soap and Skin também faz uma versão interessante da Pale Blue Eyes, escrita por Lou Reed (Velvet Underground).

Led Zeppelin, Dazed and Confused. Os Led Zeppelin há muito que andam em alhadas por causa de direitos de autor, mas a verdade é que esta versão é tão boa quanto a original escrita por Jake Holmes. A letra fala do rompimento de uma relação amorosa e foi escrita em 1967. Depois da "alegada" (ou factual) usurpação de Led Zeppelin ter sido levada a tribunal, todos chegaram a um consenso e o problema foi resolvido.

Sinead O'Connor, Nothing Compares 2 U. Por mais que tenha tocado nas rádios, o tema não cansa. Escrito por Prince para um dos seus projectos, Sinead O'Connor entrega ao tema o seu lado mais emocional e visceral. Sugestão: não o ouçam num dia menos soalheiro, ou ouçam e chorem as lágrimas todas. Tal como tenho medo de um homem que nunca chora, também temo alguém incapaz de se entregar a uma balada. Os arranjos da versão de Sinead são mais contemplativos e atmosféricos, tratados à maneira electrónica da década de 90. A letra explora sentimentos de saudade do ponto de vista de um amor abandonado. Existem alegações da parte de Sinead que Prince bateu-lhe por causa de um confronto que ocorreu a propósito do tema. 

Tori Amos, Smells like Teen Spirit. Apenas a extensão das teclas de um piano dão ritmo e melodia à voz da sublime Tori que escolheu o tema tão tocado no VHI e noutros canais de música internacionais. Tori Amos adulterou o hino dos Nirvana, transformou o caos num apelo terno e doce. 

Crosby, Stills, Nash & Young, Woodstock. Joni Mitchell escreveu Woodstock num momento de reflexão espiritual para os seus amigos Crosby, Stills, Nash & Young tocarem com ela no festival hippie. No entanto, a compositora não pode ir por causa de um programa de televisão. Considerando o festival uma espécie de multiplicação da passagem bíblica dos pães e dos peixes, os Crosby evocaram uma jam electrizante e comemorativa, tecida em conjunto com as harmonias da banda para criar um tema icónico de uma geração.

Black Is the Color (of My True Love's Hair). Ainda não se sabe bem a origem do tema, mas pensa-se que é proveniente da Escócia e faz referência ao rio Clyde. Trata-se de uma balada folk que ficou primeiramente conhecida nos EUA nos Apalaches. Inúmeros músicos fizeram versões Pete Seeger, Joan Baez, Nina Simone, Lauryn Hill, etc.

Rage Against the Machine, Renegades of Funk
Reconhecidos pela sua versatilidade e dinamismo, os vanguardistas do género RATM apresentam o tema Renegades of Funk dos Afrika Bambaataa. O original não deixa de ter um tema interessante, suportado no experimentalismo dos anos 80, quando os artistas brincavam com instrumentos digitais de ponta. Apesar da peculiaridade do original, a versão dos RATM destaca-se por confundir-se passando quase a tema original.

Type O Negative, Summer Breeze
Os Type O Negative são conhecidos no espectro gótico mas, apesar de ser tido como um género nostálgico, estes góticos nunca deixaram de parte o humor. Quando vieram a Portugal, ao Coliseu dos Recreios, apanhei-os a tocarem uma versão de No Rain dos Blind Melon deixando grande parte do público atarantado por desconhecer o tema. O original dos Seals and Croft é um tema agradável que convida a um passeio no veleiro pela costa marinha numa bela tarde soalheira.

Conclusão
Muitos mais exemplos poderiam ser apresentados, mas estes são alguns dos que consideramos "bem conseguidos". Às vezes confunde-se a origem dos temas, e por isso, para se ser um bom melómano convém saber quem é o/a autor/a de cada um, ou seja, ir à fonte para dar nome aos bois. Aproveitem para ouvir a selecção destas versões no conforto do vosso lar. 

Texto: Priscilla Fontoura
Apoio: SP