© Mercuryalart O Triunfo dos Acéfalos encaixa com vigor na cultura dos memes, a sátira explosiva e a crítica social num boom irr...

O Triunfo dos Acéfalos: Irreverência explosiva e Electro

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O Triunfo dos Acéfalos encaixa com vigor na cultura dos memes, a sátira explosiva e a crítica social num boom irreverente de electro que, apesar de ser as suas influências e referências, soa fresco e inédito. 

O duo de Santo Tirso gravou alguns EP'S e é com Cai da Cadeira, o single mais recente, que revela todo o seu activismo sem papas na língua e com o humor corrosivo que lhe é característico. 

- Como e quando é que iniciaram este projecto? 
O Triunfo dos Acéfalos começou oficialmente em 2015, quando eu (Luís) gravei um EP em casa com algumas ideias de músicas para aprender a produzir. Foi uma espécie de desafio entre amigos, tínhamos que gravar cinco ou seis músicas a solo numa semana. Gostei da experiência, por isso fui gravando mais material e eventualmente aventurei-me a dar concertos. Passados uns anos comecei a achar que era proveitoso ter alguém a ajudar-me nos concertos. Quando conheci a Joana ela ofereceu-se para me ajudar, convidei-a a juntar-se ao projecto, e agora participa também nas gravações e na escrita. 

- O EP A Batalha de Mohács é dedicado à Hungria. Como surge a vossa ligação com esse país? Na altura que lançámos este EP ainda era o meu projecto a solo e estava a fazer Erasmus em Budapeste. Escolhi o país porque queria ter a experiência de Erasmus, mas não tinha os bolsos muito fundos, e a Hungria era o país mais acessível para o meu plano de estudos. Fiz lá muitas amizades e tive experiências que me marcaram muito e que me inspiraram para escrever e gravar música. Infelizmente a Hungria vive numa ditadura "à paisana" ­- toda a gente sabe, mas ninguém faz nada, um bocado à semelhança de Portugal durante o Estado Novo - e isso também afecta a minha relação com o país. Tive lá muitas experiências boas e adoro a cidade de Budapeste, mas entristece-me imenso ver toda aquela cultura nas mãos de uma pessoa como o Viktor Órban. 

- Ainda sobre o mesmo EP, que momentos mais interessantes ou inusitados se recordam aquando da sua gravação? 
Lembro-me de pôr o meu telemóvel à chuva para tentar apanhar uma boa gravação, o que foi difícil, mas que no final de contas até resultou bem e usei na música "manda o circo embora". Nessa música tive também a experiência incrível de colaborar remotamente com um grande amigo meu que é o Francisco Cunha (Hate). Íamos enviando e-mails e ficheiros pelo Facebook para a frente e para trás até chegarmos ao produto final. A ideia original era mesmo usar um sample da música "Home" escrita por ele, mas no final acabámos por gravar uma versão diferente e acho que funcionou muito melhor. É engraçado ter tido essa experiência em 2017 e agora com a pandemia em 2020 haver muita gente a fazer música dessa forma. Recomendo! Outra experiência engraçada agora em retrospectiva foi a música "BUDA" que passou por umas boas seis versões diferentes até chegar ao produto final, que é o mais minimalista possível.

- Pareceu-me que em Hair Cracker começou uma dinâmica sonora vossa mais tempestuosa, electro e “confrontacional” e /ou “agressiva”. A lírica é bastante fluída num traço entre o humor satírico e o confessional. O que é que mais vos motivou para a composição do tema? 
Concordo com o que dizes, essa dinâmica sonora já vinha dos nossos concertos, e queríamos trazê-la para as gravações também. A Hair Cracker acabou por ser a primeira "vítima" dessas experiências. Foi uma música inspirada por projectos de hyperpop como o duo 100 gecs e todo o trabalho de Dorian Electra, mas feito ao nosso estilo (se é que existe). Apesar do humor ser satírico, cai para o lado mais bizarro e negro da cultura "millenial". Traduzimos memes da pior forma possível com o DeepL e tentámos encaixar da melhor maneira para escrever uma letra minimamente funcional. 

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- Tanto Amazónia como Adeus! Santo Tirso são temas semi-improvisados. Quão importante é para vós a improvisação e de que maneira lidam melhor com ela? 
No caso desses temas, foram gravados em alturas em que estávamos a descobrir como trabalhar em conjunto. Representam dois lados totalmente diferentes do que é essencialmente a mesma experiência: pegar em instrumentos, ligar os microfones e ver o que sai. Gostamos de improvisar porque às vezes ao produzires música cais em lugares-comuns e crias hábitos que te fazem questionar tudo e que se calhar até te desmotivam. Quando estás a improvisar, eventualmente chegas àquele "sweet spot" em que tudo começa a fazer sentido e sai algo que não estavas à espera, mas que era exactamente o que estavas à procura. 

- Gostei muito do vosso novo single Cai da Cadeira. Nesta fase crítica em que parece haver um ressurgimento de ideologias baseadas no ódio e intolerância, como se quem as apoia estivesse agora a sair das sombras por terem uma testa de ferro que os representa. O que sentem ou pensam desta situação que se vive em Portugal e no mundo com o ressurgimento da extrema-direita? 
Obrigado, ficamos muito felizes que as pessoas oiçam e gostem desta música! Quanto a esta crescente onda de extrema-direita e de intolerância, honestamente é uma merda. Sentimos que este tipo de ideias já estavam presentes há muito tempo, mas apresentavam-se de forma mais escondida, a tentar disfarçar. Parece que hoje em dia ninguém tem medo de ser uma besta, é como se tivessem puxado o ralo de repente e escorre esta sujidade toda. O problema é que figuras como o André Ventura ou o Ben Shapiro usam linguagem subversiva para fingirem que não estão a dizer o que realmente dizem, e convencem muita gente dessa forma. Apelam a um sentido de injustiça que está presente dentro de cada cidadão e orientam-no para um "inimigo" que não existe. Não existe nenhuma conspiração marxista LGBT a querer endoutrinar os nossos filhos. O que existe mesmo é uma classe rica que se aproveita de tudo e todos para ficar ainda mais rica, também através de opressão de género, raça, sexualidade, etc, e é esse sistema que devia ser o nosso inimigo comum. A culpa não é das minorias que, coitadas, mal conseguem sobreviver neste clima como estamos agora, por isso imaginem se (ou quando) estes partidos ganharem ainda mais poder. 

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- Como têm vivido esta fase da pandemia? Aproveitaram a fase de confinamento para criar ou pensar mais sobre OTDA? 
Esta fase de confinamento tem sido talvez o período mais produtivo de OTDA desde a sua criação. Acho que juntos nos motivamos mutuamente a criar mais material e experimentar coisas novas e o resultado tem sido muito positivo. Temos estado desde Abril a produzir material novo e contamos produzir muito mais. Temos também trabalhado noutros projectos e esperamos num futuro próximo poder mostrar tudo o que temos feito. 

- Temos uma rubrica no Acordes em que pedimos 5 livros, 5 discos, 5 filmes/séries favoritos ou que sejam uma referência de qualquer forma. Querem dizer os vossos? 
Estávamos um bocado indecisos em como haveríamos de fazer isto da melhor forma, por isso para não aborrecer muito os leitores, vamos escolher 2 cada um e 1 que seja uma referência para os dois: 

Livros: 
- The Ones Who Walk Away from Omelas, de Ursula K. Le Guin - (Joana) 
- Demian, de Herman Hesse - (Joana) 
- Aparição, de Vergílio Ferreira - (Luís) 
- Song of Solomon, de Toni Morrison - (Luís) 
- Girl in a Band: A Memoir, de Kim Gordon - (ambos) 

Discos: 
- Kiss My Super Bowl Ring, de The Garden - (Joana) 
- Go Fast, de Noyades - (Joana) 
- Sound of Silver, de LCD Soundsystem - (Luís) 
- Who Will Cut Our Hair When We're Gone, de The Unicorns - (Luís) 
- Loveless, de My Bloody Valentine - (ambos) 

Filmes/séries: 
- Miss Juneteenth (filme, 2020), de Channing Godfrey Peoples - (Joana) 
- Euphoria (série, 2019), de Sam Levinson - (Joana) 
- The Lighthouse (filme, 2019), de Robert Eggers - (Luís) 
- Seinfeld (série, 1989-1998), de Larry David e Jerry Seinfeld - (Luís) 
- House (Hausu) (filme, 1977), de Nobuhiko Obayashi - (ambos) 

- Que novidades podemos esperar de OTDA que possam e queiram partilhar? 
Planeamos editar um EP em breve com o material que temos feito na quarentena e vamos tentar dar alguns concertos por onde nos aceitarem e quiserem ouvir. Temos tentado fortalecer o nosso espectáculo ao vivo e queremos mostrar a nossa evolução. 

Muito obrigadx pela entrevista e pela atenção! Bom trabalho! 
Luís e Joana

Texto e Entrevista: Cláudia Zafre