©  Cristina Valadas Durante a vida somos, amiúde, surpreendidos com realidades diferentes que nem imaginaríamos existir, não deixa, portanto...

Cristina Valadas: um olhar sincero de si para o mundo. O percurso criativo que leva a uma transformação de dentro para fora, da pintura à ilustração

© Cristina Valadas

Durante a vida somos, amiúde, surpreendidos com realidades diferentes que nem imaginaríamos existir, não deixa, portanto, de fazer sentido aplicar a ancestral premissa “só sei que nada sei”; quanto mais escavamos mais percebemos que pouco sabemos. Por outro lado, comparar expressões artísticas e modos de fazer entre estrangeiros e portugueses, entre global e local, mina e limita um campo que deveria ser livre, disperso, sem fronteiras, insolúvel de carimbos que não deveriam fazer parte do universo artístico. Sem sabermos, damo-nos a viver ao lado de um criativo que expõe em Madrid, e/ou estamos a almoçar ao lado de alguém que chegou de Vila Nova de Cerveira, após uma temporada de imersão artística.

Hoje damos duas de letra com Cristina Valadas cujo trabalho enriquece uma casa com as suas esculturas, com paredes adornadas pelas suas pinturas, e facilmente soltam-se sorrisos de satisfação quando observamos as suas ilustrações. O seu trabalho não passa despercebido, tem alma e identidade. Nasceu no Porto onde vive e trabalha. Concluiu a licenciatura em Pintura na Escola Superior de Belas Artes do Porto, é pós-graduada em Design Têxtil e iniciou a sua carreira de ilustração em 2000 com o livro O Herbário, que lhe garantiu o Grande Prémio Gulbenkian de Literatura para Crianças e Jovens.

Tem realizado algumas exposições posteriores, uma das quais com alguma importância, patente em Paris na Cidade Universitária com o título Viagem ao Quarto Escuro.

Como tem lidado com a questão da covid, tem continuado a trabalhar energicamente ou foi um tempo que a abalou?
Os tempos da Covid 19 e a sua quarentena foram para mim momentos que facilitaram ainda mais a minha habitual introspecção. Sou uma pessoa que está habituada desde tenra idade a passar muito tempo sozinha. Isso tem marcado desde sempre a minha forma de estar, não gosto de confusão, sou muito avessa a multidões, barulho e conflitos. Intimidam-me as inaugurações e o público. No entanto, estou ciente destas dificuldades e tenho-me proposto a desafiá-las de alguma forma. Estou numa fase em que sinto vontade de aceitar desafios e dificuldades, vencendo os meus medos. A propósito, uma das minhas últimas exposições, em Paris, tem como tema “Viagem ao Quarto Escuro”, que aborda precisamente esta questão.

Ter vivido esses dias em absoluto silêncio e isolamento foi como acentuar mais e mais os benefícios da meditação, foram para mim tempos que me fizeram focar no momento Presente. Era bom que fosse possível para a humanidade parar todos os anos por um mês e ter tempo para refletir sobre o que realmente é importante para cada um. Foi um tempo de reflexão que tive a oportunidade de passar em comunhão com a natureza, num local de sonho, acho que o vou guardar como um tesouro no baú das minhas memórias.


Tenho muita necessidade de falar sobre o Amor e todas as suas formas. Parece-me ser essa a razão do Ser Humano estar aqui. Estamos para aprender a revelar em nós todas as formas de amar, será esse o meu contributo para aqueles que se sintam inspirados pelo meu trabalho. 


© Viagem ao Quarto Escuro, © Cristina Valadas


Será o último objectivo de um artista expor ou mostrar o seu trabalho ao público, tal como Indiana Jones vai em busca da arca perdida?
Penso que para mim não há um último objectivo, claro que é importante mostrar o nosso trabalho e fazer chegar ao outro o nosso entendimento/ponto de vista e reflexão sobre como vemos o mundo. É mais uma forma de comunicar e de estar inserida na sociedade. Tenho muita necessidade de falar sobre o Amor e todas as suas formas. Parece-me ser essa a razão do Ser Humano estar aqui. Estamos para aprender a revelar em nós todas as formas de amar, será esse o meu contributo para aqueles que se sintam inspirados pelo meu trabalho. E isso deixa-me verdadeiramente realizada. 

O que lhe parece alguém que cria somente para si e deixa nas gavetas todo um trabalho realizado ao longo da vida? Acha possível um artista não partilhar com os outros o seu trabalho?
No meu caso, a minha criatividade foi o meu suporte e a garantia da minha sanidade mental ao longo de toda a minha vida, mesmo nos períodos mais difíceis, como se fosse a minha companheira mais íntima, aquela a quem eu posso contar tudo aquilo que sei, e o que não sei, e venho a descobrir através da pintura. Dito de outra forma, é um processo de cura. Desde muito pequena o desenho tem sido o meu diário constante, era a minha brincadeira de eleição, juntamente com os legos. É um trabalho que poderá ser interpretado como um pouco egocêntrico, mas o facto é que sinto mais interesse nas descobertas que faço dentro de mim do que no exterior que me rodeia, porque quanto mais eu avanço para dentro, mais eu sinto que me desconheço, e se tenho um mundo tão vasto por descobrir dentro porque hei-de procurar fora? É apenas mais um ponto de vista!

Tudo é possível e isso é o que torna tão interessante a vida. A infinidade de possibilidades a acontecer. Para mim está tudo certo, o que levará uma pessoa a guardar tudo para si será tão válido como o querer partilhar com outros, são escolhas que cada um tem o direito de ter e, a meu ver, deverá ser respeitado. Alguns desses autores até são descobertos muito mais tarde, depois de terem partido, e aí, já nem será um problema para os próprios.



(...) acabei por encontrar uma solução de desenhar com a mão esquerda (sendo eu totalmente destra) como forma de enriquecer o meu traço dando-lhe mais expressividade e mais proximidade do desenho da criança. 


O seu percurso artístico inicia-se com a pintura, mas depois incursa também na ilustração. De que modo é que a pintura e a ilustração se conjugam e quando é que se separam?
O meu percurso foi e será sempre a pintura, pelo meio e quase por acidente descobri-me na ilustração, uma vez que muito do meu trabalho tem tantas vertentes que não foi difícil encontrar espaço neste campo. No meu caso, o que distingue a minha pintura da ilustração é a liberdade. Quando vou pintar não tenho uma ideia, um tema, nada em mente, é um caminho muito livre que parte de um campo vazio e se vai construindo no seu próprio processo por sugestões de mancha e cor. São estas formas que desenham imagens e por fim contam histórias. Este é o meu mundo, aquele que eu gosto de criar. 

A questão da ilustração prende-me ao texto, e eu reconheço alguma dificuldade até aceitar e render-me às suas amarras. É um exercício de alguma forma penoso, é quase sempre um teste à minha paciência. Apesar de tudo, tem coisas boas porque os assuntos a tratar são às vezes desconhecidos e conduzem a uma pesquisa que se transforma numa aventura por um mundo novo, acabando sempre por me enriquecer. Há ainda outra forma de eu ilustrar que é a minha predileta, pois o processo é ao contrário. Eu crio uma série de desenhos e depois entrego a um escritor para criar uma narrativa. Tenho vários livros dentro deste registo com a escritora Luisa Dacosta com que eu tive o prazer de trabalhar e conhecer. Temos um conjunto de livros para a infância feitos pelos dois processos de ilustração, que nos uniram numa amizade muito íntima e bonita.

Começa a centrar-se mais na ilustração, recebeu o prémio nacional de ilustração em 2007, em 2000 uma menção honrosa pelas ilustrações de Herbário e também garantiu-lhe o Grande Prémio Gulbenkian de Literatura para Crianças e Jovens.; sente mais prazer a criar para um público infanto-juvenil?
Tenho trabalhado na ilustração nas duas direções, para adultos e para crianças, mas acabo por ter mais trabalho direcionado para um público mais juvenil talvez pelas minhas temáticas, pelo uso das cores vivas e formas simples, e a alegria que delas emanam e façam com que se aproxime mais de “um primeiro olhar”.

Mais tarde, influenciada pelo meu filho que teve alguns problemas relacionados com a motricidade fina e que, por essa razão, os desenhos que fazia eram muito interessantes para mim, acabei por encontrar uma solução de desenhar com a mão esquerda (sendo eu totalmente destra) como forma de enriquecer o meu traço dando-lhe mais expressividade e mais proximidade do desenho da criança.


Caixas de Luz, © Cristina Valadas

A composição gráfica das suas ilustrações (por exemplo Krishna) pode ser direccionada para o público infantil, mas qualquer adulto que a observa sente-se também acolhido nesse mundo pictoricamente subtil, leve e rico em cores. Como trabalha as suas ilustrações, tem logo uma ideia pré-definida do que vai fazer ou deixa-se levar?
Dependendo do tipo de pedido que me é feito para a ilustração, quando o processo ilustrativo é o normal, fico condicionada a um texto e o trabalho acontece por tentativa/erro. É o tempo necessário até desbloquear essa “resistência “ que existe em mim para ilustrar. Eu chamo-lhe as “borbulhas”, porque quando aparecem começam por ser dolorosas, depois desenvolvem o seu expoente máximo de dor e explodem de alívio. A fase final, mais agradável, é quando encontro uma linguagem para a narrativa, e tudo… “desliza”. Já o processo ao contrário é diferente, já traz comigo uma ideia, uma temática muito íntima, é algo que acontece de dentro para fora, muito mais de meu agrado.

Diz que a leitura é como que uma viagem, o processo criativo é também para si uma viagem por onde se deixa levar?
O processo criativo para mim, é uma viagem, um isolamento do mundo exterior para um encontro interior, muitas vezes pelos corredores do desconhecido. É um processo meditativo de uma forma lúdica, que me leva ao mais próximo de mim mesma, por vezes a revelar das profundezas do inconsciente, descobertas que se elevam à luz e se transformam em cura. Acontece sempre de uma forma muito natural, nada no meu trabalho é premeditado, as coisas vão acontecendo sem uma ideia pré-concebida, eu deixo-me ir embalada nas cores, nas formas, na luz, do vazio para o desconhecido, e do desconhecido para o encontro. Tenho a necessidade procurar alegria, equilíbrio, bem estar, tranquilidade, também algum sentido de humor, estou constantemente a observar à minha volta situações que me fazem sorrir.


É mais fácil encontrar a simplicidade quando estamos cientes da nossa conexão, da mesma maneira que é fácil de observar a simplicidade nas crianças. 


As esculturas em papel machê são como que uma extensão das suas ilustrações, muda o facto de ser em 3 dimensões e inserirem-se nas técnicas que a escultura requer, mas, no que diz respeito à estética, são como personagens pertencentes a um imaginário muito próprio. Associo-as a um universo mais tropical e tribal, estarei enganada?
Tenho certa atração pela arte primitiva, dos povos que estão mais ligados à terra, em comunhão com a natureza, com os seus costumes tribais, ligados a rituais ancestrais. Sempre senti que a dificuldade está na simplicidade. É mais fácil encontrar a simplicidade quando estamos cientes da nossa conexão, da mesma maneira que é fácil de observar a simplicidade nas crianças. 

A tridimensionalidade tem sido recorrente no meu trabalho mais recente, nomeadamente com o conjunto de obras que apresentei na exposição “No Labirinto dos Afetos”, em 2016, em Torres Vedras, que tinha como objetivo agradecer/homenagear a família de origem e a família que construí, sendo as personagens representadas por caixas com objetos que os representavam. As máscaras com a exposição “Quem Vê Caras Também Vê Corações” 2016 Guimarães. As “caixas de luz” na exposição “Viagem ao Quarto Escuro”, em Paris, em 2018, e “Onde Houver Luz” 2018 Gondomar, “Encontro/Rendezvous” 2019 Lisboa.

Tenho essa necessidade constante de aventurar-me por novas formas de representação.


(...) mas quem tem olho e capacidade de observar de fora, consegue ver o quanto somos manipulados e “brinquedos” nas mãos daqueles que ditam as regras. Inflamação do ego é sinal de fraqueza, de insegurança. Eu acredito que as coisas acontecem com um propósito maior e que nada é obra do acaso e desse ponto de vista, tudo está no sítio certo. No campo dos criativos, a obra não pode existir sem o criador e quase sempre existe uma coerência entre ambos. Estranho é quando isso não acontece. Por vezes, acontece ficar ainda a gostar mais da obra de um artista, após conhecer a pessoa. Acho sempre vantajoso conhecer a obra e o artista. 


Caixas de Luz, © Cristina Valadas

Vivemos tempos em que muitos criativos colocam-se acima e à frente da obra, uma espécie de antropocentrismo narcísico, um pouco estimulado com o advento das redes sociais e pela exposição individualista, a obra deixa, por isso, de comunicar livremente sem auto-determinação porque o sujeito sobrepõe-se à mesma, o que acha disso?
Vivemos tempos em que a imagem exterior e a inflamação dos egos são uma constante em todas as áreas, muito devido às redes sociais, aos media, ao que nos impingem e vendem como o melhor para nós, mas quem tem olho e capacidade de observar de fora, consegue ver o quanto somos manipulados e “brinquedos” nas mãos daqueles que ditam as regras. Inflamação do ego é sinal de fraqueza, de insegurança. Eu acredito que as coisas acontecem com um propósito maior e que nada é obra do acaso e desse ponto de vista, tudo está no sítio certo. No campo dos criativos, a obra não pode existir sem o criador e quase sempre existe uma coerência entre ambos. Estranho é quando isso não acontece. Por vezes, acontece ficar ainda a gostar mais da obra de um artista, após conhecer a pessoa. Acho sempre vantajoso conhecer a obra e o artista.


No Labirinto dos Afectos, © Cristina Valadas


"Bonecos Material Reciclado" remete para um sentido mais etnográfico orientado muito para uma atitude Do it yourself - DIY (faz tu mesmo). Assiste-se, cada vez mais, artistas que têm como alvo consciencializar mentalidades educando-as para a prática e rotina da reciclagem e aproveitamento do material. O aproveitamento que faz do material tem como foco apontar para o problema do desperdício ou são apenas materiais que lhe dão prazer trabalhar?
“Caixas Recicladas” começaram por ser um desafio a mim mesma, reciclar tudo o que consumia. Rapidamente tive a noção da quantidade de desperdício que produzia no meu dia a dia. Hoje o círculo é mais abrangente e reciclo tudo o que está ao meu alcance, tudo o que me fazem chegar. Tornou-se um banco de personagens para futuras histórias, assim tenho o meu atelier forrado de pequenos “seres” habitantes e companheiros na cumplicidade das minhas tarefas criativas. Acabou por se tornar um exercício de prazer com algum humor. 

Para lá do Olhar Físico, © Cristina Valadas,Técnica mista

"Fantoches Indús", "krishna", "Para lá do Olhar Físico" são trabalhos intrinsecamente com teor espiritual, qual a sua ligação à espiritualidade?
Depois de uma viagem à Índia, com os meus 40 anos feitos, iniciei conscientemente e com grande entusiasmo a minha caminhada espiritual. Tem sido um percurso construtivo muito compensador que me leva a uma transformação de dentro para fora. Pode medir-se pela tranquilidade que se alcança, pela confiança que cresce em nós e nos faz mais felizes. Como diz o meu Mestre, é a viagem pela qual qualquer Ser Humano anseia (mesmo que não o saiba) e é a mais curta, são apenas 45 cm da cabeça até ao coração. Sinto que o meu trabalho ainda está num ponto de viragem para refletir essa nova forma de estar e que certamente beneficiará dessa aprendizagem e mudança de consciência. Espero puder partilhar com o meu público os benefícios desta viagem interior.


Temos uma rubrica intitulada Bagagem onde pedimos os 5 livros, 5 discos, 5 séries/filmes, poderia dizer-nos quais são os 5 livros, 5 discos, 5 ilustradores, 5 escultores referência para si?

5 Livros
- Autobiografia de um yogue, de Paramahansa Yogananda
- Siddhartha, Um poema Indiana de Hermann Hesse
- A Índia Secreta, de Paul Brunton
- Imperatriz, de Shan sa
- O Físico, de Noah Gordon

5 Discos
- WomenChild, Cécile Macloren Salvant
- Djaliya, Ablaye Chissoko
- Shaka Zulo, ladyzmith Black Mambazo
- Liquid Spirit (Special Edition), Gregory Porter
- For Us All (Yoka Boka), Jeff Majors

5 Ilustradores
- Bernard Jeunet
- Martin Jarrire
- Beatrice Alemagna
- Alain Corbel
- Susa Monteiro

5 Escultores
- Michelangelo
- Auguste Rodin
- Henry Moore
- Tomie Ohtake
- Anish Kapoor

Muito obrigada pela sua disponibilidade e muita saúde para si e para os seus projectos.
https://cristinavaladas.pt
Texto e entrevista: Priscilla Fontoura
Artista entrevistada: Cristina Valadas
Produção: SP