© Vera Marmelo A inocência e alguma espécie de romantismo leva-nos cedo a insistir num caminho que se inicia como hobby. Mas quanto mais se ...

Vera Marmelo, a flâneur ao encontro da fotografia, muitas vezes embalada pela música. O seu blog continua a ser o arquivo das suas imagens

© Vera Marmelo

A inocência e alguma espécie de romantismo leva-nos cedo a insistir num caminho que se inicia como hobby. Mas quanto mais se emerge na paixão, mais difícil vai sendo voltar à superfície desse mergulho profundo, porque quando esse enamoramento acontece depois sucede o amor. 

Em Portugal, já devem ter encontrado na Web trabalhos da Vera Marmelo, a fotógrafa que tem dado destaque à cultura underground com as suas imagens. Ainda na flor da idade, foi mostrando curiosidade em sair do núcleo dos seus amigos da escola para habitar espaços culturais e ir ver concertos. 

A Música e a Fotografia são dois mediums que têm tido uma relação estreita, principalmente quando começaram a surgir publicações que mantiveram estes dois mediums essenciais para passar a informação. Vera Marmelo é, claramente, um nome cada vez mais associado à música porque, na verdade, a sua investida – pelo menos a mais exposta – tem sido não apenas o registo fotográfico de músicos, mas a forma como olha para cada um deles. 

Olá, Vera, como tens enfrentado este tempo de pandemia? 
Não a enfrento, aceito-a e respeito-a. 

Março passado, quando tudo começou a cair, a cancelar, a adiar, não havia previsão nenhuma sobre um fim, então vivi isto de uma forma moderadamente leve. Pensei que era uma boa oportunidade para ler, estudar, arrumar coisas, atualizar site, voltar a ter tempo para dormir. Tenho outro trabalho para além da fotografia e vim para casa em modo teletrabalho. Sobraram-me as muitas horas de concertos, de fotografia, de planos para fotografar, de amigos, de viagens então tentei aproveitar. Tive um primeiro confinamento muito privilegiado a trabalhar, segura e com companhia e energia mental e física para aproveitar o tempo que me sobrava. 

Com o aligeirar das regras voltei a fotografar. Houve uma capacidade de resistência e um querer fazer de muita gente que me chamou para voltar a fotografar. E entre Junho e início de Janeiro ainda fotografei muito. Agora, nesta segunda fase de regresso a casa, datas canceladas, notícias terríveis na televisão, testemunhos de amigos médicos e amigos atingidos de forma pessoal pela pandemia, da capacidade de adaptação a ser mais dolorosa que nunca e estarmos todos em desgaste, estou só a tentar manter-me sã e fazer o que posso, que é ficar em casa e continuar a escapar à doença. Continua a pensar e a ver fotografias todos os dias. De vez em quando nos passeios levo a máquina, mas recolhi-me e nem consigo pensar no futuro. Continuo ocupada com o meu outro trabalho. Debaixo do meu privilégio. Acho que nunca valorizei esta vida dupla que tenho mantido nos últimos 14 anos como agora. 

Os concertos eram quase como a tua arena de trabalho, e agora, em que são tão escassos, achas que, quando isto começar a normalizar, vais voltar ao modus operandi de antigamente, ou achas que algo vai mudar na forma como vislumbras trabalhar? 
Entre Junho e Janeiro voltou tudo ao normal. Tinha esse receio quando parei. Nunca tinha estado mais do que uma semana sem fotografar um concerto. Então óbvio que estando parada mais de 3 meses comecei a pensar o que aconteceria no regresso. Como sempre fui arrastada para a arena e foi tudo muito normal, aparte das máscaras, termómetros à entrada de salas, afastamentos e limpeza de mãos. Demorei a habituar-me a salas meio cheias, por causa das restrições de limitação. Mas a felicidade da normalidade e as saudades que tínhamos de todos fez com que nem sentisse a necessidade de pensar em “como fazer isto”. Simplesmente fui. 

Tens o teu blogue há mais de 10 anos, o v - miopia, e dás-lhe relativa importância, porque o entendes como o teu arquivo online onde vais alojando as tuas fotografias. Os blogues foram as primeiras publicações mais democráticas em que cada um de nós podia publicar para qualquer internauta, e, na verdade, os blogues estavam no auge nos finais dos noventa e princípio do novo milénio. No entanto, ficaram um pouco obsoletos por causa da extrema alienação e distracção que as redes sociais provocaram. Como achas que se pode dirigir a camada mais jovem, que lida com os adventos mais recentes e rápidos, para estes lugares da Web mais “clássicos”? 
A reação que eu sinto é o “deixar de parte”. Estamos todos a gravitar em torno do instagram. O consumo de fotografias, notícias, até de música faz-se dentro daquela rede. Quem sou eu para navegar contra a maré? A verdade é que continuo a alimentar o blog, a fazer o meu exercício pós fotografar de selecionar um conjunto e o partilhar ali. Faço as pontes para as redes sociais. Escolho uma mini-amostra para as stories do instagram e uma imagem que me interesse mais para o feed do instagram. 

Começas a repensar melhor o teu processo de edição. Sabes que a forma como partilhas imagens nas diferentes plataformas são diferentes. O blog continua lá. É um bom arquivo para quem procura uma imagem em particular a encontrar. As visitas são muito menores. Mas, por exemplo, há pouco tempo pediram-me muitas imagens de um músico para entrarem numa entrevista grande. Limitei-me a enviar o link com o tag para o blog e a base de escolha estava ali. Poupou-me estar a cavar em arquivos enormes. A pré-seleção já ali está feita. Pode ser que num futuro qualquer as pessoas voltem a ter interesse em ver mais além de uma fotografia. É o meu álbum de fotografias. Vai continuar, mas sei que com um décimo do interesse que outrora gerou. 

És muito apologista das lentes fixas, entendes a fotografia como um acto que obriga o autor a andar e ir ao encontro de algo para captar aquele momento que foi procurado por quem está atrás da câmara. Achas que o significado da fotografia é uma espécie de flâneur em vez de voyeur? 
A ideia do flâneur agrada-me muito mais. O significado da fotografia que tu fazes é aquele que lhe queres atribuir. Revelar-se-á nas imagens que fazes. A mim interessa-me não interferir, ser “a fly on the wall”, mas sem manto de invisibilidade. A proximidade ao fotógrafo interessa-me. Física e também “humana”, no sentido de me interessar o que está a acontecer ao ponto de o achar relevante e merecedor do meu tempo. 

Fazes outro tipo de trabalho, mas o mais exposto é o contacto que tens tido ao longo de uma década com músicos. Essa paixão ainda se mantém acesa e voraz, ou foste, ao longo deste tempo, também motivado pelo cansaço e descoberta de outro mundo menos mágico mas relacionado à música, sentindo outros interesses para fotografar? 
Afasto-me de forma mais ou menos elegante de mundos menos interessantes. A minha constante tentativa de procurar universos musicais e gente mais nova que eu é na verdade uma tentativa de resgatar essa paixão. A fotografia de música tem-me feito as pontes com outros universos e outros tipos de fotografia. É uma relação feliz. Continuo a conseguir mantê-la saudável. Mas com a plena consciência de que não depender exclusivamente dela a nível monetário é uma ajuda preciosa. 

Ano Novo, Jan. 2020 © Vera Marmelo

Podes relatar algum episódio que te tenha marcado de alguma fotografia que tenhas feito? 
Nunca há uma imagem x ou y. Estava a correr as entradas do blog para tentar encontrar uma resposta para isto. É também o meu auxiliar de memória. 
2020 tinha tudo para ser incrível. Comecei o ano a fotografar amigos super queridos a tocar. Detesto a cena da passagem do ano, mas lá me convenceram a passar a tarde, noite e madrugada num sítio cheio de estranhos, cerveja a voar e rock. O argumento foi “vai ser uma noite normal para ti, só acrescentas a contagem decrescente” e assim foi. 

Agora que olho para estas imagens penso no quão por garantido tomava este tipo de noites. 2020 começou assim e teve dois meses do que podiam ser estas histórias de fotografias que aqui vocês me pedem. Tive três concertos com a Angel Olsen, com acesso a tudo. 

Angel Olsen, à tarde, no Capitólio, Jan. 2020, © Vera Marmelo

Músico (que acompanha Angel Olsen), Capitólio, Jan. 2020, © Vera Marmelo

Convém o leitor perceber que sigo o Devendra enquanto fã séria desde 2004. Portanto há aqui uma camada de fangirl pesada nesta oportunidade. 

Devendra Banhart, no Capitólio © Vera Marmelo

Devendra Banhart, no Capitólio © Vera Marmelo

Devendra Banhart, no Capitólio © Vera Marmelo

Mas, a parte boa nisto tudo é que no mesmo dia em que estive com o
Devendra pela segunda noite, com o tal acesso a tudo e mais alguma coisa, ainda tive a vontade de ir fotografar na ZDB, durante a tarde, mais uma das matinés dos workshops do Peter Evans

Peter Evans "Som Crescente", na ZDB © Vera Marmelo

Marca-me sempre esta minha energia inesgotável de estar presente, que de vez em quando tem o brilhantismo de alguém muito conhecido que me deixa estar por perto, mas intercalada com banho de cerveja e matinés com estudantes do Peter Evans

As fotografias da Vivian Maier vão estar expostas em Cascais. Muito se poderia acrescentar sobre a fotógrafa que viveu uma vida tão imersa a registar as suas observações nos seus passeios. Muito arquivo dela ficou retido numa garagem e alguma polémica foi gerada por causa dos direitos, etc, imagina o tempo que Vivian deve ter passado a revelar. Para ti a fotografia passa ainda muito por este processo clássico, cujo verdadeiro significado também advém do processo de revelação, ou achas que há outras perspectivas legítimas também, como o processo que a fotografia digital tem implícito? 
Do que vi no documentário, a maior parte dos negativos até ainda estavam por revelar. O que a movia nem era bem o resultado das imagens… era sair e fotografar. E há tantos fotógrafos que mesmo usando o digital continuam a trabalhar desta forma. Fotografar, chegar a casa, descarregar imagens e só voltar a olhar para elas depois, afastando-se do dia, ganhando uma distância ao que fotografou para depois olhar de forma independente para as fotografias. 

O que faço já não tem muito tempo para esta magia da descoberta no pós. O que esperam de mim, e arrisco-me a dizer a razão pela qual também me chamam, é esta rapidez, o momento a ser partilhado no segundo seguinte a ter acontecido. 

Agora faço esse exercício do tempo depois, mensalmente. Tenho, ou tinha, esse compromisso mensal de olhar para todas as fotografias que fazia e compilar o meu best of no site (veramarmelo.pt). Este ano foi atípico mas ainda o fiz. Esse olhar para trás, com mais calma, o que fotografei, compilar menos imagens e as que me dizem mais a mim é um exercício muito útil. 

A minha cabeça em formato digital está no blog e no instagram. O meu processo analógico de seleção de imagens e espera está no site. 

Tu ainda vives a fotografia analógica, o prazer da revelação, todo esse processo que não sabe bem o que está no rolo e que é surpreendido na revelação. Achas que um fotógrafo profissional deveria ter sempre conhecimento sobre o processo mais primitivo, mesmo que não escolha esse caminho, ou achas legítimo que um fotógrafo profissional entenda somente o processo digital? 
To each is own! Não vamos obrigar a malta a ter uma máquina de escrever quando já há tanta alternativa de escrita. Aprende-se muito com a espera, com a contenção a fotografar. Mas podes fazer isso tudo até a fotografar com o teu telemóvel. 

Qual é a fotografia que tiraste e mais gostas e que é capa de um disco? 
A do Thurston Moore. 

Achas que o poder da fotografia, tal como a música e o cinema, é elevar uma possível magia, que à partida possa passar despercebida se não for mediada por um olho fotográfico? 
O poder de contar uma história, de te mostrar uma coisa ou sítio onde não podes estar, de tornar belo uma coisa para a qual nem olhas na corrida do dia. É o cinema dos que querem prazer imediato. Dos que não têm paciência para esperar. 

Acredito muito no poder de passar uma mensagem, de guardar momentos, de te ajudar na construção da tua história na tua memória. 

Tu não és fotojornalista, no entanto há sempre um lugar ético que qualquer pessoa em qualquer trabalho deveria ter, a imagem tão conhecida The Vulture and the Little Girl, tirada por Kevin Carter correu o mundo e foi premiado com um Pullitzer, mesmo assim, o fotógrafo teve um desfecho trágico, acabando com a sua vida, talvez por causa da consciência mórbida que não dissociou o acontecimento traumático daquela imagem com o clique do botão. Como vive a tua consciência nesta circunstância? 
No universo em que fotografo nunca me deparei com uma cena trágica. Mas prefiro mil vezes não carregar no botão a representar de forma injusta e indigna quem está à minha frente. É preciso ter uma fibra muito particular para seres fotojornalista, um dos bons. Não a tenho. 

Há muita gente a publicar inescrepulosamente imagens de autores sem aplicar os devidos créditos. Insurges-te em relação a essa prática ou já lidaste tanto com isso que agora já nem te aquece nem arrefece? 
Já lidei muito com isso. Tentei sempre ser cordial. Nunca deu chatices. E hoje em dia recebo é créditos por coisas que não fotografei. 

Há alguém a quem gostarias de fotografar (esteja morto ou vivo)? 
Neste momento quero fotografar um molho de gente todo colado num buraco qualquer mal ventilado, sem termos medo de morrer a seguir. 

Como tens sentido a representatividade de género desde que começaste até agora no papel de fotógrafa? 
Os tempos mudaram muito. Somos cada vez mais. No pit é realmente notável. Ou então sou eu que estou mais atenta às miúdas na tentativa de as “proteger”. 
Tenho estado, nestes tempos de pandemia, mais interessada em pesquisar o trabalho de outros e isso levou-me a fazer um curso que se foca na Fotografia feita por mulheres, no Atelier de Lisboa, surpreendeu-me sermos só alunas. Este olhar para o trabalho no feminino e a presença mais tardia das mulheres neste universo só me revela que há muito a fazer. Muito a aprender. E acima de tudo a necessidade de sermos mais, em diferentes mundos da fotografia, para que o ponto de vista se diversifique. É diferente, mesmo muito diferente. 

Estamos a viver tempos muito estranhos e a cultura tem sido a secção mais prejudicada, como olhas para o futuro da cultura? 
Nem o consigo olhar de frente pelo medo que isso me traz. Como sempre, será a última a ser ajudada a se levantar. Estamos, neste momento, mesmo na base da pirâmide. A tentar sobreviver. Que a resiliência não nos falhe. 

Temos uma rubrica intitulada Bagagem onde pedimos as referências para 5 livros, 5 discos, 5 filmes/séries, a acrescentar a estes pedidos podes também referir 5 fotógrafos que são para ti uma influência? 

Livros:
Just Kids, Patti Smith 
Kindred, Octavia E. Butler 
A tetralogia da Elena Ferrante, A amiga genial 
A triologia do Henry Miller, Sexus, Nexus e Plexus 
Girl Woman Other, de Bernardine Evaristo 

Discos:
Marked for Death, Emma Ruth Rundle 
Hiss Spun, Chelsea Wolfe 
Joy as an act of Resistance, Idles 
Titanic Rising, Weyes Blood
 All Mirrors, Angel Olsen

Filmes:
Thelma and Louise, Ridley Scott
Paris Texas, Wim Wenders
Parasite, Bong Joon-ho
Everybody Street, Cheryl Dunn
Small Axe, Steve McQueen

Fotógrafos:
Pooneh Ghana 
Alec Soth 
Magdalena Wosinska 
João Canziani 
Sacha Leca

Intro e entrevista: Priscilla Fontoura
Entrevistada: Vera Marmelo
Todas as Imagens: © Vera Marmelo