A identidade de um lugar é transmitida pelo toque singular dos guardiães da tradição oral. De há uns tempos para cá, assiste-se ao ressurgim...

Os Papangu musicam a cultura popular do nordeste brasileiro. Holoceno conta com participações de Torstein Lofthus e Toby Driver


A identidade de um lugar é transmitida pelo toque singular dos guardiães da tradição oral. De há uns tempos para cá, assiste-se ao ressurgimento do folclore brasileiro na cultura brasileira pós-moderna. Os Papangu, formados em 2012, são estafetas dessa missão. Passaram sete anos até "Holoceno" ser lançado. O primeiro disco da banda inspira-se na escatologia ecológica e no movimento modernista nordestino do Brasil, região árida historicamente marcada pela desigualdade social e pela violência. O disco cantado na língua nativa da banda, o português, narra a história de um cangaceiro - um bandido do sertão do Brasil - que, após ter uma visão do seu destino, tenta mudá-lo por meio de um ritual de sacrifício. A tentativa não muda o curso do destino, mas acentua-o para uma reacção em cadeia, impelindo o protagonista a fazer o pacto de Fausto para impedir o próximo desastre ambiental.

A preservação e disseminação do folclore brasileiro por meio da ficção e da música de artistas brasileiros têm se revelado, nos últimos tempos, uma consciência que se afirma por manter a história da região viva. Apesar das influências directas de prog, stoner rock, post rock, sludge, zeuhl e os ritmos do Nordeste do Brasil, a soar a Mastodon e King Crimson de meados dos anos 70, dir-se-ia que "Holoceno" poderia ser a alegoria de uma nave espacial que abduziu os Oranssi Pazuzu para a realidade brasileira. O disco é permeado por riffs lentos aumentados por estruturas musicais incomuns e ritmos sincopados - cortesia de Torstein Lofthus, lenda de Elephant9 e SHINING - com participações de Uaná Barreto no teclado, Luis Souto Maior no sintetizador monofónico analógico e Prophet-6, e o saxofonista Benjamin Mekki Widerøe de Seven Impale. O tema bónus inclui uma remistura de Bacia das Almas de Toby Driver (Kayo Dot e Maudlin of the Well), exclusivo para compras feitas no Bandcamp. A compra de Holoceno no formato digital via Bandcamp ajudará a produção e lançamento do próximo disco dos Pagangu.

Como correu a digressão e por que caminhos andaram?
Papangu: Correu muitíssimo bem e superou todas as nossas expectativas. Tocámos no sudeste do Brasil, onde se fixa a maior parte do público brasileiro de metal e rock vive (graças às áreas metropolitanas do Rio de Janeiro e São Paulo). A digressão incluiu quatro datas na capital paulista, uma na capital carioca, e outras no interior de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Nunca havíamos tocado fora do nosso estado natal, mas a repercussão de Holoceno e os convites feitos pelo duo de grindcore experimental TEST e pelo festival Kool Metal Fest nos tiraram do conforto de casa. Foi, de fato, nossa primeira digressão de verdade, e gostaríamos muito de fazer isso com mais frequência – quiçá na Europa em 2024, se algum booking agent ou organizador de shows europeu nos convidar. Vendemos todos os CDs e fitas cassete, além de quase todo o estoque de camisetas e discos de vinil. Não acreditávamos que isso seria possível.

As revoluções que ocorreram aqui no tempo do Brasil colonial. As criaturas fantásticas do imaginário popular. Tudo isso fez parte do nosso crescimento e nós temos orgulho disso.


Por que levaram tanto tempo para lançar o disco?
Papangu: Quando iniciamos a banda, éramos basicamente crianças. Hector (guitarra e vocal) devia ter por volta dos 17 anos, que no Brasil ainda é tido por adolescente. Nós éramos estudantes universitários e não tínhamos nem dinheiro e nem estrutura alguma para gravar nosso som. Lentamente nós conseguimos algum dinheiro através dos nossos empregos com o passar do tempo, bem como montando, aos poucos, uma estrutura apta para polir nossas composições de maneira mais profissional, através da aquisição de mais instrumentos, mais equipamentos, interfaces de som que permitiam a gravação de demos… Esse processo de amadurecimento como músicos e como pessoas fez com que o resultado demorasse a ser concretizado. Mas as sementes estavam plantadas desde cedo. A música “Terra Arrasada”, por exemplo, foi a primeira composição da banda.

Têm algum vínculo afectivo com o nordeste ou a região serviu apenas de inspiração para produzir Holoceno?
Papangu: Todos nós da banda somos nascidos e/ou criados no nordeste do Brasil. O vínculo que temos com as histórias, tradições e falas presentes no nosso disco está no nosso sangue. Nós crescemos ouvindo histórias dos cangaceiros e do bando de Lampião em suas viagens pelo sertão nordestino. As revoluções que ocorreram aqui no tempo do Brasil colonial. As criaturas fantásticas do imaginário popular. Tudo isso fez parte do nosso crescimento e nós temos orgulho disso.


Fizeram muita pesquisa com recurso a livros de inspiração ao movimento modernista nordestino?
Papangu: Algumas letras e conceitos são directamente inspirados por obras como “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, além de “Morte e Vida Severina” de João Cabral de Melo Neto, além de obras diversas de Ariano Suassuna e Augusto dos Anjos.

Quem foi o responsável pelas líricas e como se dá o processo de composição?
Papangu: Depende da canção. Existem canções que possuem a letra integralmente construída por um ou outro membro. As letras de “Água Branca”, por exemplo, foram escritas por Marco (baixo e voz). Já “Lobisomem” foi escrita por Hector. Terra Arrasada, contudo, é um esforço colaborativo. Não há uma regra definida, portanto, e estamos sempre abertos a sugestões e colaborações dos membros da banda.

São histórias que eram contadas por nossos pais e mães, avôs e avós enquanto crescíamos. A cultura popular do nordeste brasileiro é riquíssima e merece ser cada vez mais estudada, apreciada e protegida. 


"Água Branca" encontra-se incluída tanto no disco como no EP. Por que optaram por esta escolha?
Papangu: O principal motivo de lançamento do EP foi apresentar ao nosso público uma versão alternativa da faixa “Água Branca” que antes só podia ser ouvida em uma compilação chamada “Milim Kashot Vol. 4”, de curadoria do blog Machine Music e realizada como forma de campanha beneficente em prol de um colega da cena da música extrema. A versão alternativa da compilação possui vocais diferentes, backing vocals diferentes, bateria diferente, um solo diferente (de guitarra e não de sintetizador, como em Holoceno) e uma mixagem diferente. Achámos que seria legal mostrar a versão alternativa também para os nossos fãs. Além disso, incluímos uma faixa experimental chamada “São Lourenço” para apimentar o lançamento.

O folclore brasileiro nordestino, os contos e mitos, são também muito estimulantes. Consideram que o vosso mundo entra também nesse imaginário? E quais são os contos que mais gostam?
Papangu: São a maior inspiração para os conceitos e letras que fazemos, sem dúvida. São histórias que eram contadas por nossos pais e mães, avôs e avós enquanto crescíamos. A cultura popular do nordeste brasileiro é riquíssima e merece ser cada vez mais estudada, apreciada e protegida. Acreditamos que as histórias mais fascinantes são as que envolvem criaturas místicas como as carrancas e os espíritos que habitam o grande Rio São Francisco, bestas vorazes como o lobisomem, a serpente feita de fumaça chamada de Boitatá. Além disso, as histórias reais e fantasiosas dos cangaceiros e do bando de Lampião estão entre as mais fascinantes.

O contacto inicial foi o de admirador. Marco (baixo e voz) é fã dos elephant9, banda de Torstein, e dos Kayo Dot, grupo de Toby, desde a pré-adolescência, e eventualmente fez amizade com os dois músicos ao vê-los em concertos. Como surgiu a necessidade de colaborar esteticamente em condições distintas – a pandemia nos forçou a gravar baterias fora do Brasil; precisávamos remixar “Bacia das Almas” –, contactámos os músicos e sugerimos a colaboração. 


Como foi o contacto com o Torstein Lofthus e Toby Driver?
Papangu: O contacto inicial foi o de admirador. Marco (baixo e voz) é fã dos elephant9, banda de Torstein, e dos Kayo Dot, grupo de Toby, desde a pré-adolescência, e eventualmente fez amizade com os dois músicos ao vê-los em concertos. Como surgiu a necessidade de colaborar esteticamente em condições distintas – a pandemia nos forçou a gravar baterias fora do Brasil; precisávamos remixar “Bacia das Almas” –, contactámos os músicos e sugerimos a colaboração. O resultado foi excelente e pretendemos continuar a trabalhar juntos em algum momento.


Têm uma preocupação moral com a sustentabilidade e o estado do nosso planeta. Lançaram a versão em vinil de "Holoceno" cuja finalização se deu com material amigo do ambiente e livre de toxicidade, à base de cera aquecida transferida para o papel. Como tem sido em termos de encomendas, as pessoas têm denotado mais consciência ecológica e ambiental, ou continuam a preferir a outra versão?
Papangu: Temos uma grande preocupação com o cataclisma ambiental que vem se assomando sobre o nosso planeta e isso está presente no conceito de “Holoceno”. É interessante e importante que uma grande quantidade de produtos, inclusive de bandas, possa ser confeccionada com materiais mais sustentáveis. Mas não temos ilusão de que isso vai salvar o mundo ou adiar o apocalipse. Apenas mudanças no cenário político e económico terão esse condão. Há uma falácia, criada pelas grandes corporações e efetivamente culpadas pela devastação, de que a culpa do cenário que vivemos é do pequeno cidadão que toma um banho longo ou que deixa de consumir produtos “eco”, quando na verdade o meio de produção capitalista e exploratório em que vivemos é um tiro certeiro em direção ao fim do mundo como conhecemos. O lobby feito pelos setores agropecuário e petrolífero para subsidiar o gado emissor de metano e os combustíveis fósseis ultra poluentes é um exemplo desse descaminho. Então é importante sim que produtos, e nossos produtos, sejam confeccionados em embalagens e materiais sustentáveis, mas nós precisamos de muito mais do que isso para impedir as mudanças climáticas e a devastação ecológica global.

...é difícil enxergar esse tipo de mudança dentro de um cenário de capitalismo predatório como o que nós vivemos. Mas isso não significa que nós vamos assumir uma postura pessimista e entreguista. Continuaremos lutando, pois nossas vidas e as das futuras gerações estão em jogo.


Agora que a Amazónia está entregue a um presidente que defende a sua protecção ambiental, encontram-se mais descansados ou desconfiam das suas promessas?
Papangu: Nós participámos ativamente da campanha para eleger Lula como o novo presidente do Brasil e ficámos imensamente felizes com sua vitória. Foi um passo determinante para remover o criminoso fascista chamado Jair Bolsonaro da presidência do nosso país. Contudo, precisamos continuar com os olhos bem abertos para tudo que precisa ser feito no que diz respeito à proteção do meio ambiente nas terras brasileiras. É esperado que o governo Lula retome a proteção merecida e esperada por nós brasileiros e pela comunidade internacional e nós vamos torcer para que isso ocorra. Ainda é cedo para tomar qualquer tipo de julgamento, temos apenas 3 meses incompletos de governo sob dificuldades de negociação com o Congresso, mas estamos desde já acompanhando os passos necessários para uma reversão no cenário em sentido positivo.

Quanto à reversão do cenário, é válido retomar o que afirmamos no questionamento anterior: apenas uma mudança drástica nos paradigmas políticos, sociais e econámicos será capaz de estancar ou ao menos atrasar o cenário de devastação ambiental em que vivemos. Pesquisas recentes demonstram que para manter o aquecimento global em apenas 1,5 grau Celsius exigiria que as nações reduzissem coletivamente suas emissões em cerca de 43% até 2030, além de que parassem de emitir dióxido de carbono para na atmosfera no início dos anos 2050. Infelizmente, é difícil enxergar esse tipo de mudança dentro de um cenário de capitalismo predatório como o que nós vivemos. Mas isso não significa que nós vamos assumir uma postura pessimista e entreguista. Continuaremos lutando, pois nossas vidas e as das futuras gerações estão em jogo.

Além da gravação do próximo disco, quais são os próximos objectivos?
Além de novas composições, é claro, pretendemos continuar levando a nossa música para lugares que ainda não tocamos dentro do Brasil e também ao redor do mundo. Seria fantástico conhecer e tocar em Portugal, inclusive!

Holoceno foi misturado por Jorgen Smädal Larsen, do estúdio Paradiso, em Oslo, masterizado por James Plotkin e produzido por Marco Mayer e a produção executiva ao cargo dos Papangu. A arte final esteve ao comando de Ars Moriendee, o logo por Salomão Montenegro e fotografia de Malu de Castro.

Texto e entrevista: Priscilla Fontoura
Capa: Ars Moriendee
Logo: Salomão Montenegro
Fotografia: Malu de Castro