Qual será o grande objectivo dos filmes-concerto do programa Stereo do   Curtas Vila do Conde ? Tocar em cima dos filmes, o que, em ...

O sono pesado dos Linda Martini durante a viagem onírica de Germaine Dulac


Qual será o grande objectivo dos filmes-concerto do programa Stereo do Curtas Vila do Conde? Tocar em cima dos filmes, o que, em última análise, transforma-os em meros telediscos, ou reinterpretá-los através da composição sonora, enriquecendo a força das imagens? A liberdade criativa não tem limites, mas, na realidade, qual é o desafio?

La Coquille et le Clergyman

Linda Martini é a banda convidada para acompanhar ao vivo a projecção de La Coquille et le Clergyman, de Germaine Dulac e escrito por Antonin Artaud, na última sessão Stereo, desta 26ª edição do festival. Os filmes experimentais apresentam, muitas das vezes, uma narrativa não linear, onde a noção espaço tempo não existe. La Coquille não anda apenas à superfície do experimentalismo, entra também nos surrealismo e expressionismo. É um sonho atormentado por desejos desconhecidos. Pouca importância se dá à narrativa clássica e arquetipal. É como se Freud evocasse a todo o tempo o subconsciente, que montado em imagens faria pouco sentido. 

© João Brites

Há uma aura negra que se aguenta durante o filme inteiro. Os Linda Martini esbarraram com a dificuldade de conseguir atingir essa aura. Mais dificuldade tiveram em atingir o surrealismo implícito. Foram os Linda Martini a que estamos acostumados. Tinham aqui oportunidade para revelar um lado latente que são obrigados a esconder por força dos limites que criaram para o seu próprio som poder ser entregue de bandeja a um público que foram conquistando a pulso, mas que, na maioria, não os aceitará noutros trajes. Há um ambiente onírico que atravessa todo o filme. Estiveram muito longe de conseguirem fundir-se com esse onirismo presente na obra.

© João Brites

Na projecção damos de caras com um sacerdote que é atormentado pelas suas alucinações eróticas, que ora rasteja, ora voa como num sonho. O desejo carnal do sacerdote deixa-o obcecado pela mulher. Muitas vezes esse desejo é exprimido pelos objectos que segura em forma de concha, um símbolo por excelência feminino, muitas vezes representado na renascença, como por exemplo na obra "O nascimento de Vénus", de Boticelli. Outras vezes as mãos, que nos remetem para a expressão clássica de Nosferatu, exprimem a frustração do sacerdote ao não conseguir possuir a mulher que persegue. O general, que por vezes surge com batina de padre, esse grande vilão, bloqueia essa busca de prazer. Todas as personagens do filme comportam-se com teatralidade e drama.

La Coquille et le Clergyman

Há um momento em que observamos várias mulheres a limpar afanosamente uma sala. Hélio Morais, baterista, passa as vassouras pela tarola, captando aqui um dos poucos momentos em que a banda conseguiu captar o ambiente da acção, mas, ainda assim, deixando de fora outros complementos sonoros que nos poderiam fazer entrar naquele espírito inteiramente. No seu todo, foram raras as vezes que a emoção da tela encaixou no som. Faltou trabalho de sonoplastia. Digamos que mais pareceu estar a ser tocado um álbum sem interrupções. Os vidros partidos são uma constante no filme e sente-se a falta desse som cristalino como também da onda de volumes sonoros que poderiam envolver-nos mais.

La Coquille et le Clergyman

Não é porque um filme dos anos 20 é preenchido por um som de outra época - neste caso o rock -, que faz com que o trabalho salte para "fora da caixa". Interpretaram as composições e serviram-se do vídeo como se de um teledisco se tratasse. Os personagens não ganham voz, as quebras dos filmes foram partidas em partes pelas faixas que os músicos foram tocando, conforme iam visualizando com o público as imagens. Nenhum instrumento teve tempo para se mostrar isoladamente e a tensão das personagens ficou esquecida atrás das notas. É uma banda de rock que aqui pareceu estagnada. O desafio foi lançado, e se há género que se serve da projecção para trazer ao espectáculo outras sensações é o pós-rock. Não fizeram mais do que isso. Deparamo-nos com uma banda agarrada à sua performance habitual sem sair da sua zona de conforto, quando tinha aqui um universo de possibilidades à disposição para explorar. 

Nos anos 20, Germaine Dulac brinca com a montagem e transmite uma certa negritude que não foi captada pelos Linda Martini. Sentiu-se o mesmo nas cenas mais surrealistas, como por exemplo num momento em que o sacerdote gatinha pela rua.

La Coquille et le Clergyman

© João Brites

Num tempo em que as condições eram limitadas e se exigia um engenho maior na aplicação da criatividade, Germaine Dulac conseguiu de uma forma mais do que eficaz demonstrar, no final dos loucos anos 20 do século passado, que se pode sair facilmente das limitações com a ajuda da tecnologia, mesmo que na altura fosse rudimentar. Da banda, quase um século depois, com acesso a um universo quase infinito de gadgets e outros auxiliares, esperava-se o mesmo. Não o conseguiu fazer. Poderia ter sido um filme-concerto e esperava-se que o fosse. Quem está familiarizado com o pós-rock sabe que o que ali aconteceu não foi mais do que o já feito por outras bandas do género. Poderia ter sido um filme-concerto, mas foi antes um concerto com projecções.


TEXTO: PRISCILLA FONTOURA
IMAGEM: JOÃO BRITES, frames do filme "
La Coquille et le Clergyman"
LOCAL: Auditório Municipal de Vila de Conde, CURTAS VILA DO CONDE
DATA: 21 de Julho, 2018
Filme-Concerto: LINDA MARTINI, "
La Coquille et le Clergyman"