Quem é   William Tyler ? Lançar respostas pode soar superficial. Seria possível explorar várias adjectivações apenas pela sua performanc...

Duas guitarras, o mesmo nome: o do tio de William Tyler

Quem é William Tyler?
Lançar respostas pode soar superficial. Seria possível explorar várias adjectivações apenas pela sua performance, naquele palco onde se encontra praticamente despido, na noite de sexta-feira, dia 8 de Novembro, no Auditório de Espinho. O lado despojado de William Tyler salienta o poder das mãos que há muito manejam cordas de aço (de guitarra). Mesmo que o tempo vá passando, a sua alma não se deixa arrefecer. A relação do músico com a guitarra é honesta e cúmplice, que requer tempo para desbravar acordes difíceis — próprios da técnica fingerpicking. Uma relação difícil, mas íntima e persistente; como se a guitarra fosse uma extensão dele próprio. Apesar da técnica complexa, Tyler não olha para o braço da guitarra para saber o que toca. Deixa-se levar pelo transe.



Pergunta se vamos aguentar um concerto apenas a uma guitarra numa sexta-feira à noite, quando poderíamos estar numa festa mais animada ao som de um DJ. Tyler ironiza que, a seguir ao concerto, pode ser ele próprio o DJ...


O virtuoso do folk inquiriu umas quantas vezes o público e brincou dizendo que ainda estamos a tempo de ir para o bar após o concerto "enfadonho". Alguém do público perguntou se Tyler se queria juntar à festa, e o músico satirizou que sim. Ao mesmo tempo que afinava a guitarra, referiu que era suposto trazer discos para vender mas, em tom de ironia, disse que foram feitos reféns na alfândega norte-americana, e cujas despesas não iriam ser suportadas pelo governo do seu país. Acrescentou: "Mas eu tenho discos no mundo, não nesta cidade, nem nesta noite." Entre canções e silêncios, animou também a audiência que apenas foi para o ver. Indagou se mais alguém tinha alguma questão, talvez com o intuito de colocar o público, que se mostrava constrangido, mais à vontade; e quando, na verdade, era Tyler que pisava sozinho um palco que desconhecia. Afirmou que silêncio também é bom, e perguntou se alguém queria pedir um tema de Frank Zappa. No mesmo instante respondeu: "Não o façam, se me pedissem não saberia o que fazer."


William Tyler estreou-se a solo em 2010 com Behold the Spirit. Em 2013 lançou Impossible Truth, em 2016 Modern Country, e este ano Goes West, um trabalho incrível que continua a desenhar as paisagens do seu país. Natural da terra do country, Nashville, movido pelo seu lado romântico, foi, há uns anos, rumo à costa oeste dos EUA. Um lugar mágico onde vivem 10 milhões de habitantes. Para si, tanto tem de encantador quanto de assustador. A região fá-lo reflectir sobre o estado da crise ambiental, afectada pela seca e pela aridez durante 7 meses consecutivos de um ano. Criticou o poder que os ricos têm, que, na prática, não faz jus à moral discursiva do apelo à preservação do ambiente. Na verdade, complementa, são os ricos que podem mudar de planeta se alguma catástrofe acontecer, deixando os pobres entregues ao seu destino (malfadado?). Após o interlúdio, começou a dedilhar Country of Illusion de Impossible Truth, preenchendo o som da guitarra com os efeitos dos pedais.


Enquanto apaixonada pelo folk, e por tudo o que diga respeito a guitarras acústicas, questionei, da plateia, se aquela era a sua primeira guitarra. Explicou que não. E contou-nos uma bela e memorável história.


"A minha primeira guitarra acústica é parecida com esta. Uma Martin, com um corpo mais pequeno, dada pelo meu tio, há uns 15 anos. Foi a primeira vez que tive uma guitarra acústica. Ele faleceu há uns anos, e, apesar do falecimento dele, ainda cheguei a tocar ao vivo com ela algum tempo, mas depois pensei que o melhor seria deixá-la em casa pelo seu valor sentimental. Então acho que esta é a minha primeira guitarra acústica que comprei com o meu dinheiro. Ao menos não pertence a um membro da família morto... Quando comprei o estojo da guitarra... de facto esta história é um pouco sinistra... eu passei um dia inteiro numa loja de venda de guitarras em Nashville. Estava a experimentar guitarras e esta custava entre 2000 a 3000 dólares menos do que as que queria comprar. Então comprei-a, porque era a que conseguia pagar, e passei algum tempo a tentar convencer-me que queria comprar outra mais cara, mas depois apercebi-me que esta não se diferenciava muito das restantes. Então virei-me para o funcionário e disse: 'é esta guitarra que quero comprar', e ele respondeu, 'boa escolha'. A primeira guitarra com a qual viajei pertencia ao meu tio materno. Quando o funcionário trouxe o estojo da guitarra, num dos lados constava o nome da pessoa a quem pertencia, e o nome era exactamente igual ao do meu tio. O estojo da guitarra que escolhi naquela loja tinha o mesmo nome de um membro da minha família, do tio que me ofereceu a minha primeira guitarra."


Entre as canções há momentos de silêncio e diálogo com a audiência. Atitude própria de um músico que tem vindo a reunir experiências vividas nos palcos dos bares dos EUA. Há o lado contador de histórias bem-humorado e o do homem solitário. O criador das mais impressionantes bandas-sonoras é alguém que se quer por perto e com quem se gostaria de construir uma relação de amizade. O seu ar angélico transmite paz e muita serenidade, algumas vezes remetendo para Nick Drake. Enquanto embala a audiência com temas viajantes, faz com que a técnica do fingerpicking pareça fácil; manter o ritmo do baixo das cordas graves em contraste com acordes mais agudos. Tal como Ben Chasney, William Tyler é a prova de que a melhor descendência do folk está viva e de boa saúde: Elizabeth Cotten, Robbie Basho, John Fahey, Jack Rose (e muitos mais) são nomes que ficam nos alicerces da história do género musical.


O músico regressou a Portugal, desta vez com três datas marcadas, uma delas — finalmente — em Espinho, após uma década de conversas travadas com o organizador responsável pela sua vinda a este palco. Depois de anos a tocar com Lambchop, com os Silver Jews e ter participado com Bonnie "Prince" Billy, Tyler começou uma discografia a solo centrada na música folk instrumental.


Seguidos os aplausos do público, Tyler regressou ao palco deixando a única versão de rock que disse saber tocar, Go on Your Way de Fleetwood Mac, onde a guitarra construiu ao mesmo tempo a base instrumental e a harmonia das vozes. Verdade seja dita, depois deste William Tyler não há festa nem bar que nos convença a ficar.




Texto: Priscilla Fontoura

Concerto: William Tyler
Local: Auditório de Espinho 
Data: 8 de Novembro, 2019