Imagem de Arquivo: Família Ovitz, Auschwitz Circos nos campos de concentração Logo após a abertura do campo em Börgermoor, a vida cultural a...

Efeitos da música na sobrevivência dos prisioneiros nos campos de concentração, força invisível mas motriz para a resiliência de muitos sobreviventes (Parte 4)

Imagem de Arquivo: Família Ovitz, Auschwitz

Circos nos campos de concentração

Logo após a abertura do campo em Börgermoor, a vida cultural alcançou um ponto alto. Isso ocorreu através de dois eventos separados no campo, bem como a estreia de "Börgermoorlied" (Canção de Börgermoor), mais tarde conhecida como "Moorsoldatenlied" (Canção dos soldados de turfeiras) e "Le Chant des Marais". Wolfgang Langhoff foi a ideia por detrás de um desses eventos, o "Zircus Konzentrazani", e mais tarde, num relato de primeira mão, deu uma descrição detalhada (num relato em primeira mão) da sua vida em Börgermoor. Fontes recentemente descobertas, mostram que uma semana antes da estreia do Zircus Konzentrazani, um espectáculo semelhante teria acontecido. Numa carta de 21 de Agosto de 1933, Eugen Eggerath escreveu:

"Ontem o circo estava aqui. Os camaradas criaram um drone [Teufelsgeige] a partir de latas de arenque em conserva e pratos de lata. Havia também um violino, um bandolim, uma gaita e um acordeão. No total, eles formaram uma orquestra 'adequada'. Depois vieram as doze atracções. Noni, a menina sem a parte inferior do corpo, era a atracção principal. Havia cerca de 500 detidos na plateia. Era tão engraçado quanto Apollo. O grande espaço aberto dentro do quartel é usado como mercado (somos capazes de circular livremente dentro do arame farpado). Langhoff ficou verde de inveja e prometeu que no próximo Domingo haveria um óptimo espectáculo para crianças e famílias pela metade do preço.".

Zircus Konzentrazani criticou as condições do campo principalmente através da ironia. Também fez zombaria indirectamente do primitivismo dos guardas. Mesmo assim, as SS ficaram impressionados com o espectáculo, que os surpreendeu com a sua originalidade e jovialidade. Com a sua execução brilhante e encenação precisa, Langhoff projectou especificamente o circo para afectar esse segmento da plateia. Eles deram à SS as primeiras filas de assentos (o que também eliminou a possibilidade de tirar fotografias que mais tarde poderiam ser usadas para propaganda). Mais do que isso, precisavam apresentar piadas que se encaixassem nos horizontes limitados das SS. De uma maneira divertida, questionaram as crenças nazis, como quando levantaram a questão da demanda dos prisioneiros por melhores condições de vida. As linhas de punção foram calculadas para criar uma risada unificadora e libertadora. Por um lado, esse tipo de humor mantinha a ilusão de que os prisioneiros ainda eram capazes de agir de forma independente, aumentando assim a sua vontade de resistir. 

Os ex-soldados Heinrich Pakullis e Ernst Saalwächter reviveram o circo com a ideia de que se deveria ter "circo na vida, circo na morte".


De facto, o circo conseguiu melhorar as relações com os guardas e emprestar aos prisioneiros uma nova esperança e (uma) coragem renovadas. O Zircus Konzentrazani testou a capacidade dos prisioneiros de expressar o seu sofrimento e resistir, não apenas em Börgermoor, mas também noutros campos. Os prisioneiros transferidos para outros campos carregavam consigo a ideia do circo, que tornou-se um modelo para eventos muito além de Börgermoor: realizaram-se eventos paralelos a 1 de Abril de 1934 em Börgermoor, e no dia de Ano Novo de 1941, em Neuengamme. Os ex-soldados Heinrich Pakullis e Ernst Saalwächter reviveram o circo com a ideia de que se deveria ter "circo na vida, circo na morte".

No que respeita ao "julgamento" que se poderá ter sobre este momento tão trágico da história, o filósofo e pedagogo brasileiro Mateus Salvadori explana como Hannah Arendt o entendeu(-o), nessa perspectiva abordando o assunto com: Quando o Silêncio se torna Cumplicidade:

"Em Kafka as burocracias modernas podem ser obsessivas e perigosamente auto-centradas, ou seja, kafkianas. As mesmas podem tornar um cidadão inocente em culpado, pela própria ignorância do sistema. E eu, posso falar verdades sem ser transparente. Muito do que Eichmann falou era verdadeiro, Eichmann por exemplo, disse que não matou, e, de facto, não puxou o gatilho, por isso disse que não poderia ser punido por um crime que não praticou, mas que o estado nazi praticou. Mas, obviamente, Eichmann não foi transparente, foi verdadeiro nalgumas proposições, mas não transparente na função que cumpriu. Eichmann, segundo Hannah Arendt, deixou de ser portador de ordens num determinado momento, para ser portador de segredos. Não chegou, por exemplo, a ver fuzilamentos, mas isso o torna inocente? Claro que não. Mas por que é que ele não é inocente por algo que não presenciou? Porque faltou desobedecer, faltou indagar. Ser transparente é assim mais do que dizer verdades, ser transparente é um desdobramento do pensamento, do pensar. Para Hannah Arendt pensar é buscar a origem das questões, assim o pensamento original não é ter ideias novas e inéditas, mas é identificar as causas e os modos para que eu possa interagir e transformar. Pensar assim é política, e conhecer não é pensar, não é pensamento, mas é um domínio técnico. Todos nós assim podemos ter muito conhecimento e não necessariamente sermos sujeitos pensantes. Pensar tem relação com significado, com sentido. O pensamento assim não se refere necessariamente à verdade das coisas, mas refere-se àquilo que significa para nós. Por isso, o grande modelo para Hannah Arendt é Sócrates, que vai sempre indagar, sempre vai perguntar, questionar. E sempre somos seres plurais, pois - no mínimo - sou eu mais a minha consciência; posso por exemplo não contar a ninguém que fiz algo, que realizei um determinado acto, mas a minha consciência sempre saberá."

Na obra Dignidade da Política, Hannah Arendt diz-nos que somente aquele que sabe viver consigo mesmo saberá viver com os outros. E eu nunca me poderei separar do meu Eu. Portanto, é melhor estar em desacordo com todo o mundo, com todas as pessoas, do que consigo mesmo. Não querer matar significa não querer ficar junto, preso sempre com o assassino, pois se eu matar eu sempre estarei preso no assassino que sou Eu. Mesmo quando eu estou só, eu nunca estou separado da pluralidade do mundo dos homens que é a humanidade.".

Conclusão:
A vida musical nos campos de concentração e a morte eram de natureza dicotómica. Por um lado, a música agia como um meio de sobrevivência para os prisioneiros; por outro lado, serviu como um instrumento de terror para as SS. Até mesmo prisioneiros abusaram de músicos prisioneiros para os seus próprios propósitos de sobrevivência. Com apresentações musicais diárias forçadas, promoveram o processo de quebrar a força de vontade dos prisioneiros e de degradação humana. Assim, a música nos campos nazis serviu como distracção e método de sobrevivência cultural necessários para as vítimas e, simultaneamente, como meio de domínio para os seus perpetradores. 
O resumo e os exemplos expostos acima só podem começar a dar uma compreensão do impacto do Holocausto sobre a música e os músicos da Europa; contudo não chegam sequer a pintar uma imagem verdadeira da amplitude e profundidade da actividade musical que continuou durante o Holocausto. É preciso avivar continuamente a realidade de que a vida desses músicos não era confortável, mas horrível, além do que qualquer imaginação consegue alcançar. Ainda há muita pesquisa a ser feita, mas nas últimas décadas vários académicos e instituições importantes aprofundaram o assunto, desenterrando trabalhos anteriormente esquecidos pelo caminho. A nossa esperança é que essas escavações continuem nas próximas décadas, para que a intenção expressa de Hitler, a de aniquilar o povo judeu e acabar com todos os remanescentes da sua cultura, possa mostrar-se repetidamente como um plano fracassado.

Fontes:
O Homem em busca de um Sentido, Viktor Frankl.
Musicofilia, Oliver Sacks.
Uma Centena de MilagresZuzana Růžičková.
Quando o Silêncio se torna Cumplicidade, Mateus Salvadori.
Lista de músicos: 

Texto: Priscilla Fontoura
Artigo: Efeitos da música na sobrevivência dos prisioneiros nos campos de concentração, força invisível mas motriz para a resiliência de muitos sobreviventes. O presente artigo foi muito suportado no conteúdo incluído no site Music and the Holocaust.

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