Foto © Daphne Daniela Nunes é artista visual e apresenta o seu trabalho artístico sob o pseudónimo Daphne. Na etimologia grega Dafne sig...

Artista emergente aplica o olhar contemporâneo a partir de materiais mais sustentáveis. Daphne permite que as formas e a multiplicação das cores surjam por elas próprias, como resultado dos processos que estão a acontecer na tela

Foto © Daphne

Daniela Nunes
é artista visual e apresenta o seu trabalho artístico sob o pseudónimo Daphne. Na etimologia grega Dafne significa loureiro, pois, enquanto musa, foi perseguida por Apolo que se apaixonou por ela quando atingido por uma flecha de Eros, que também acertou Dafne, só que com uma flecha de chumbo, cuja “inoculação” tinha como efeito a rejeição do amor do deus. Dafne, já desesperada, pediu ao pai que a livrasse da perseguição. Consequentemente, Apolo transformou-a num loureiro: "Se não podes ser minha mulher, serás minha árvore sagrada". Desde então, o deus sempre trazia consigo um ramo de louros.

Nascida em 1993 e natural de Tomar, Daphne mudou-se aos 18 anos para a capital. Licenciou-se em Design de Moda, momento em que desenvolveu o gosto pelas várias texturas; até então a sua técnica era apenas materializada a grafite ou tinta da china. Após o curso, e decidida de que não queria trabalhar no mundo da moda, começou a nutrir interesse pela pintura abstracta. Escolheu, portanto, concentrar as suas forças para explorar o seu fascínio pela cor e reencontrar a expressão artística pessoal. Desde então, tem se dedicado ao trabalho mais experimental, explorando a infinitude da possibilidade cromática, aliada à forma orgânica que, no fundo, representa o seu reencontro com o mundo natural.

Olá, Daphne, como tens passado este tempo pandémico?
Olá! A pandemia apanhou-me a meio de um fase de mudanças pessoais grandes e acabou por fazer com que esse momento se arrastasse por tempo indefinido. É quase como se estivesse em transição há mais de um ano. Se isso me levou para um caminho que não era o que planeava, e me colocou numa situação que não considero ideal, ao mesmo tempo permitiu-me chegar a algumas conclusões acerca de mim própria, e acerca do meu trabalho enquanto artista, por isso diria que têm sido tempos bastante interessantes. 

O Acordes serve também de espaço para dar a conhecer o trabalho de artistas emergentes. Como tem sido a tua relação com a arte, tens conseguido subsistir através da tua?
A minha relação com a arte tem vindo a evoluir de forma muito positiva, especialmente durante este último ano. Sinto que tenho vindo a tornar-me cada vez mais próxima do meu trabalho, quase de uma forma simbiótica. A minha vontade / necessidade de fazer arte vai aumentando, ao mesmo tempo, essa mesma arte vai-me dando segurança para me expandir enquanto pessoa e artista.
 
Como olhas para a união ou desunião da comunidade de artistas plásticos em Portugal, cada vez mais ou menos individualizada?
Penso que união ou desunião dependerá de para onde olhamos. Por exemplo, eu vejo uma comunidade crescente de artistas independentes, com backgrounds diferentes, que se afastam da arte mais elitista, e nessa comunidade, aparenta existir alguma união. É para ela que me interessa mais olhar. Relativamente a outros círculos, não sei se o mesmo acontecerá, mas honestamente também não me parece que eu esteja em posição de o comentar. 

Interlude no10”, acrílico em papel. © Daphne

“Sukha III - Focus”, acrílico em tela. © Daphne

Assiste-se, paulatinamente, à vontade, de alguns criativos mais experimentais, de retornar aos materiais orgânicos como forma de exploração e entendimento “alquímico” para trabalhar-se a partir do que a natureza oferece. Tem sido essa a tua exploração? Se sim, como exploras o valor cromático?
A minha exploração tem sido mais baseada na relação entre a cor e forma orgânica e nos processos que lhes dão origem, do que propriamente nos materiais.
Mas existe dentro de mim a vontade de vir a trabalhar com materiais exclusivamente orgânicos, especialmente a nível cromático. Trabalho sempre com cores que me remetem para a Natureza, e seria interessante para mim explorar formas de trazer essas cores directamente para o meu trabalho. Por exemplo, através do uso de pigmentos naturais, feitos por mim, a partir de solo ou de plantas. Mas é algo a que ainda não dediquei tempo e estudo suficientes. 

A definição de como a estética orgânica é vista e alcançada na arte contemporânea aponta para as práticas composicionais especificamente orgânicas; acreditas ser a melhor estratégia para o futuro da construção plástica, ir às origens para trabalhar a partir das mesmas só que aplicando o olhar contemporâneo?
Claro que sim, até penso que será a única forma de manter a sustentabilidade do trabalho artístico. Explorar seja que estética for, sem ir às suas origens, sejam elas formais ou conceptuais, acho que acaba por ser um exercício com muitas limitações do ponto de vista criativo e algo superficial. 

Exploras essa intenção apenas pela motivação técnica ou também moral?
Honestamente, pelas duas. Mas sinto que a motivação moral pesa mais e é o que me faz continuar. O que me atrai no tipo de pintura que faço é o facto de trabalhar com uma técnica que não me permite controlo total. Eu apenas posso controlar o que está a acontecer até certo ponto, porque na verdade, as formas e a multiplicação de cores surgem por elas próprias, como resultado dos processos que estão a acontecer na tela. Isto é algo que me remete para o mundo natural e me faz reflectir na minha condição enquanto um ser que faz parte da Natureza e colabora com ela, e não um que lhe é superior e a tenta controlar / contrariar.
Esta mensagem é muito importante para mim e dedicar-me a algo que me relembra constantemente dela vem sem dúvida de uma necessidade moral. 

“Superterrestrial 4”, acrílico em papel. © Daphne

“Integration I”, acrílico em papel. © Daphne

O teu trabalho mais abstracto parte da realidade com vista à construção abstracta, como se processa essa construção; apenas numa base prática ou também reflexiva?
Do ponto de vista cromático, a base sempre foi reflexiva. Talvez porque a cor é uma componente tão grande no meu trabalho, desde o início senti a necessidade de a pensar muito bem e de a utilizar para representar ambientes muito específicos.

Olhando para a componente formal, os meus trabalhos mais iniciais resultaram de uma base prática e experimentalista, em que estava apenas a familiarizar-me com os processos físicos e químicos que se dão neste tipo de pintura e são necessários à criação da forma orgânica, que é na sua essência abstracta.
Mas nos meus trabalho mais recentes já tem havido uma tendência maior para que a reflexão determine as minhas decisões a nível técnico, por exemplo desde a espessura da tinta, à temperatura a que o quadro vai secar. Tudo isso começa a ser mais bem pensado e feito de forma intencional. 

Os fundamentos da origem da mimesis, construídos pelos pioneiros Platão e Aristóteles, separam o acto de criar entre os imitadores da realidade e os experimentalistas que partem da desconstrução para a criação de outra realidade. Concordas que quanto mais o representante se distancia da realidade, mais perto está do acto da criação?
Faz-me mais sentido que seja o oposto. Ou seja, quanto mais nos aproximamos do acto da criação, mais próximos estamos de conhecer e realidade como ela é.
Eu acredito que o acto de criar é precisamente a desconstrução daquilo que consideramos ser real, mas não acho que isso crie uma realidade diferente. Parece-me mais que essa desconstrução apenas separa e coloca em perspectiva as várias camadas que compõem a realidade aparente, e permite-nos vê-la com outros olhos. É um processo analítico que nos pode abrir portas para descobrir uma realidade mais interior e profunda, e por consequência mais verdadeira, porque vai para além daquilo que observamos à primeira vista.
O que é realmente criado durante todo este processo é uma percepção real da realidade e uma linguagem capaz de a representar. 

Como sentes o interesse pelo teu tipo de arte em Portugal?
Parece-me que é um tipo de arte ainda um pouco desconhecido pelos portugueses, mas que tem vindo a ganhar alguma visibilidade nos últimos tempos. O número de artistas portugueses que se dedicam a este tipo específico de pintura tem vindo a aumentar e obviamente a contribuir muito para isso. Quando eu própria comecei a explorá-lo, de forma muito tímida há 4, 5 anos, não era tão fácil encontrar alguém a fazê-lo como é neste momento. 

Tens em perspectiva alguma série de quadros?
Sim. A maior parte dos trabalhos que tenho feito já têm sido quase sempre séries, embora pequenas e normalmente em papel, por uma questão de fluidez de trabalho e também de logística.
Mas tenho sentido necessidade de me dedicar a formatos maiores e, por isso, planeio lançar uma série de maiores dimensões ao longo dos próximos tempos.

Introdução e entrevista: Priscilla Fontoura
Entrevistada: Daphne