Nicolau Copérnico (1473 - 1543) O primeiro requisito para um compositor é estar morto, escreveu em 1951 Arthur Honegger no seu livro Je suis...

Abutres elegantes por Rudesindo Soutelo

Nicolau Copérnico (1473 - 1543)

O primeiro requisito para um compositor é estar morto, escreveu em 1951 Arthur Honegger no seu livro Je suis compositeur. A frase soa a profeta da desgraça, ou pássaro de mau agouro, a acompanhar a vida dos criadores da música erudita, mas, na realidade, não passa de uma constatação histórica. Vivaldi, apesar de alguns êxitos em vida, morreu em Viena num total esquecimento e só no século XX foi recuperado o seu legado. Mozart foi atirado numa vala comum, baixo o triste olhar do seu cão, único amigo que o seguiu até ao cemitério e, hoje, toda a Áustria vive do trabalho dele. Bach, a quem agora reverenciamos como um deus, foi ignorado por mais de um século.

Seguindo o Princípio Copernicano de que “não somos o centro do universo”, podemos amortecer a impetuosidade criativa e diluirmo-nos na mediania geral. Esse Princípio Copernicano supõe que a localização do observador provavelmente não seja especial e, portanto, sentir-se o centro não é uma perspetiva correta. No conjunto do universo, o planeta terra é mais um entre milhões de planetas, pelo que a perceção de um terrícola, quando observa a imensidão celeste, é relativa. Galileo Galilei, defensor das ideias de Copérnico, foi condenado pelo tribunal da Inquisição em 1616, por ameaçar o umbigo de um deus sem habilitações astronómicas.

Modernamente, J. Richard Gott recuperou aquele raciocínio Copernicano[1], também conhecido como o Princípio de Mediocridade, para calcular a queda do muro de Berlim ou a extinção da humanidade. A fórmula de Gott também pode ser utilizada para averiguar o tempo de vida que vai ter uma obra musical, desde que o cálculo não seja feito por um observador especial, que assiste ao seu início ou ao seu fim, pois, como o seu nome indica, a mediocridade não acontece nos extremos. Neste sentido há uma certa similitude com a curva dos valores do Quociente de Inteligência (QI) na sociedade onde, para além de que os métodos de medição sejam mais ou menos éticos e fiáveis, há um certo consenso em que aproximadamente um 82% da população encontra-se nos valores entre 80 e 120. As minorias acima e abaixo desses valores sofrem uma existência de inadaptação à ‘mediocridade’. Os sobredotados e génios são muitas vezes discriminados por terem ideias ‘muito complicadas’ para uma cultura medíocre.

Com muito bom olfato, os grandes traficantes da música sabem esperar pela defunção do compositor antes de explorar as suas obras. O compositor morto não reclama nem impõe condições molestas. Se consultarmos as grandes, e mesmo as pequenas programações de festivais, orquestras, grupos de câmara e solistas que preenchem os concertos de música erudita das diversas salas e instituições, assim como as salas de aula das instituições de ensino da música, constata-se que, em geral, as obras de compositores vivos são quase inexistentes ou puramente anedóticas; há, contudo, meritórias exceções que só confirmam a regra. O repertório incide uma e outra vez numa liturgia necrólatra com cadáveres primorosos para abutres elegantes. A desculpa para não apresentar as obras que nos são contemporâneas e deveriam dizer-nos respeito, quase sempre se baseia no hipotético gosto do público. Gosto que a eles corresponderia desenvolver e aperfeiçoar pois ninguém sabe se gosta ou não daquilo que não conhece. Na música, e nas artes em geral, a oferta é quem cria a procura.

Nesta cultura economicista o poder de decisão está nas mãos de indivíduos medíocres, adoradores do bezerro de ouro que só promovem aqueles que lhes lustrem o ego. Mas se não há compositores, escritores e artistas que nos empurrem a imaginar outros futuros possíveis, nem os abutres elegantes conseguem sobreviver.

(*) da Academia Galega da Língua Portuguesa.
Compositor e Mestre em Educação Artística e Ensino de Música.
© 2020 by Rudesindo Soutelo
(Vila Praia de Âncora: 29-10-2020)

Pé de foto: Nicolaus Copernicus, De revolutionibus orbium coelestium (1543).
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1. Gott, JR. (1993). Implications of the Copernican principle for our future prospects. Nature 363, pp. 315–319.

Publicado em As Artes entre as Letras (Porto)
Nº 290 p.20, 12-Maio-2021.