Não se pode ignorar os cenários que compõem os quadros dos passeios que se fazem. Pode ser que os olhos, retidos pela curiosidade, parem num jardim para o contemplar, seja pela sua imensidão, seja pelos detalhes que guarda: um pássaro pousado num ramo, uma folha que permanece no chão, deixada a secar passivamente ao calor do sol ou a dançar ao sabor do vento, ou ainda uma figueira prestes a dar fruto. Toda essa riqueza de um jardim pode existir. De igual modo, dentro de uma casa cuja fachada não revela mais do que aquilo que está à vista, pode estar um tesouro — ou mais. Não se deve avaliar uma casa pela sua fachada, assim como não se avalia um livro pela sua capa; na realidade, são muitas as casas que nos surpreendem pelo recheio que escondem, ou seja, pelas riquezas histórico-culturais que as convertem em legado.
Ninguém pensaria, à primeira vista, que a VIC Aveiro Arts House seria um núcleo e ponto de encontro para valências artísticas. Combina traços de casa-museu, alojamento local e residência artística. A casa pertenceu ao ceramista, cineasta, pintor e escritor Vasco Branco, que seguiu, durante a sua vida, uma via artística e um ativismo político que se opunha à corrente dominante da época. Hoje, além de casa-museu, ali se realizam atividades que continuam a interessar a quem procura propostas inortodoxas.
Na noite de 9 de julho de 2021, encontra-se presente o músico que tem dinamizado a cultura da cidade do Porto com uma visão fora do comum, pouco preocupada com o gosto das massas. O baterista Gustavo Costa — nome já consolidado na cena da música experimental e da improvisação — apresenta-se a solo na VIC para estrear o seu novo álbum. Atrás de si, faixas e esculturas metalizadas; à sua frente, uma bateria com um set up separado.
Por força da pandemia, que provocou o cancelamento de vários eventos, a sessão Ressonância, organizada pela VIC, esteve parada cerca de um ano e meio devido às restrições que exigem adaptações constantes. No entanto, Gustavo contactou a VIC para saber se poderia estrear o álbum a solo no espaço, intitulado Entropies and Mimetic Patterns, cujo lançamento marca a primeira colaboração entre a Sonoscopia — associação também gerida pelo músico — e a editora Lovers & Lollypops.
Ao contrário das propostas anteriores, como Most People Have Been Trained to be Bored, este novo Entropies and Mimetic Patterns busca uma abordagem diferente, anulando sons sintéticos e plásticos para desenhar uma estrutura acústica mais fiel, sem distorcer as propriedades e potencialidades “naturais” do instrumento. Nessas repetições padronizadas, caminham-se círculos, formando geometrias que desenham triângulos e outras figuras. Nesta dança de ritmos primitivos, não se anda rígido nem em linha recta — só se a Terra fosse plana, como alguns afirmam veementemente... Fugindo à comicidade dessa crença moderna dos terraplanistas, o facto é que este disco representa um regresso às origens da percussão, um fechar de ciclo num número palíndromo. Nessas batidas que se transformam em mandalas, acrescentam-se detalhes aqui e ali em repetição, sem jamais fugir ao tempo — talvez numa tentativa de elevar o corpo a um estado meditativo, libertando-o da razão que tantas vezes o aprisiona.
Com o passar do tempo, Gustavo Costa tem adoptado uma abordagem exploratória e independente, menos sujeita a dispositivos electrónicos. Regressa cada vez mais ao início da sua caminhada musical, explorando o instrumento em toda a sua potencialidade orgânica e acústica.
A vida é marcada por renascimentos que trazem desafios estimulados por novas fases e experiências. Quando se pensa estar a ser levado a algo nunca vivido, somos surpreendidos pelo que sempre esteve ali, escondido sob um pano — fala-se do primitivismo, das raízes e bases, momentos que potencializam o que foi experimentado na infância. Regressar ao primitivismo permite retomar uma inocência libertadora, desprendida da lógica e da razão, para que o corpo ultrapasse as suas barreiras.
Neste concerto, alguns fecharam os olhos para se concentrar apenas no som das baquetas nas peles dos timbalões e da tarola, nas faixas metalizadas, nos pratos e pratinhos. Sentiu-se a exploração sonora que Gustavo retirou da bateria acústica afinada e montada para produzir uma estética orgânica. A performance remete ao lado mais selvagem de nós (que nos julgamos civilizados), e evoca personagens de uma história colonialista que retrata o confronto entre indígenas e ocupantes; mas o tempo é outro, e hoje nos enchemos de questões e dúvidas, fruto do pluralismo de visões e do desgaste causado pelo afastamento das origens — uma ligação contra-natura ligada linearmente às eras industrial e tecnológica. No fundo, a urgência do presente aponta para o regresso ao simples: reconciliação com a espiritualidade, a relação entre Homem e Natureza, a importância da biologia, a compleição.
Músico introvertido, mas versátil em várias disciplinas — pedagogia, criação de sons e esculturas sonoras, programação — Gustavo concentra a sua vida profissional em estimular as pessoas a educar o ouvido para novas possibilidades sonoras, sempre com uma atitude generosa e humilde. Anos de experiência musical levaram-no a caminhos mais complexos. Hoje, a sua trajectória é pacífica e curiosa, como a de uma criança que explora sons em repetição, numa antropologia sonora que examina cada som com precisão, explorando-o com o que tem à mão — e se se colocam esses pratinhos sobre cada timbalão, que som sairá dali? Este disco encaixaria perfeitamente como banda-sonora de um documentário filmado na Amazónia, sob direcção de Cláudia Andujar, ou numa ficção de Apichatpong Weerasethakul.
O título do álbum une paradoxos: entropia, que significa desordem, e padrões miméticos, cuja representação transmite paciência, emoção e proximidade a um instrumento que expressa a comunhão com o músico. É assim que Gustavo organiza o caos do seu universo sonoro singular. O álbum inclui temas curtos, alguns com menos de 2 minutos, começa com Entropy e prepara um "ritual" que alterna minimalismo percussivo e batidas primitivas, às vezes polirrítmicas. Destaca-se Crass, um tema curioso que provoca pulsão e liberdade física. Ao longo do disco percebe-se a intenção do explorador sonoro, que compartilha com o ouvinte o seu imaginário: uma selva cheia de acontecimentos inesperados. Mimesis Natura eleva o espírito à transcendência em camadas multiverso. Gustavo não tocou a faixa que encerra o disco, Allegorial Dream Vision, uma faixa de 15 minutos com batidas profundas que soam como reverberações ilusórias, imergindo o ouvinte no ritual inicial.
Entropies and Mimetic Patterns abre o quadro geral e transita para os detalhes mais ínfimos. No quadro, tanto existe uma selva cheia de biodiversidade imperceptível ao olho humano, quanto um figo cheio de sementes e propriedades nutricionais, como mostrado no vídeo de Augusto Lado para o tema Circles and Time I.
Além da apresentação do disco na VIC, o novo álbum foi apresentado num ciclo de concertos: 10 de Julho no Salão Brazil em Coimbra, 11 de Julho na Sonoscopia no Porto, e no dia 28 de Julho no Colapsolexias, em Santiago de Compostela.