Nem tudo que reluz é ouro: da mesma forma uma imagem que apresenta comida com bom aspecto suscita apetite para quem a observa, a publicidade...

Numa Relação Séria com a Netflix: Fyre: The Greatest Party That Never Happened (2019)


Nem tudo que reluz é ouro: da mesma forma uma imagem que apresenta comida com bom aspecto suscita apetite para quem a observa, a publicidade que se faz de um festival de luxo com modelos e conforto VIP convence a quem procura na experiência materialista a resposta para um momento clímax de entretenimento.

Fyre foi - um pouco à imagem do festival de Woodstock - o circo promissor onde tudo pode acontecer. O festival de música Fyre nas Bahamas, vendido como a ilha de Pablo Escobar, foi promovido com vídeos de alta qualidade e comunicação misteriosa muito utilizada nos dias de hoje para criar expectativas nas pessoas; toda esta promoção convenceu-as a viajar até às Bahamas para um festival onde só cabem pessoas com dinheiro e/ou influência. O plano do festival Fyre não difere muito da estrutura de outros festivais ou plataformas desta era nas quais vinga o mediatismo que se viraliza num abrir e fechar de olhos, neste caso com a ajuda de 400 dos maiores influenciadores mundiais (incluindo as modelos Kendal Jenner, Bella Hadid e Hailey Baldwin e a atriz Emily Ratajkowski), no Instagram. A publicidade de um quadrado cor de laranja nos perfis de centenas de figuras públicas, e o link para um vídeo onde vários modelos passeavam na ilha paradisíaca, gerou o efeito dominó nos seguidores que começaram em pouco tempo a comprar os bilhetes para o festival que esgotou num ápice. O programa do festival era tão diverso, quanto apelativo: yoga na praia, trampolins dentro de água, passeios de iate, comida feita por chefs de renome ou até uma caça ao tesouro na ilha.

Toda a arquitectura para Fyre começou com a mente do sociopata operacional de Billy McFarland, o rapper Ja Rule (cuja ausência não é explicada no documentário) e a sua plebe (nada inocente). Esta máquina que inclui promotores, assessores, programadores e designers criou o festival de música com promessas fora de qualquer lógica possível, esse grande flop originou um documentário na Netflix intitulado Fyre: The Greatest Party That Never Happened, realizado pelo documentarista Chris Smith, responsável por “American Movie” (1999).


A grande fraude orquestrada pelos mentores levou o festival ao fiasco - o evento divulgado como a "experiência cultural da década", com ingressos a custar entre 830 e 10 mil euros em troca de alojamento de luxo, comida gourmet, concertos com os artistas mais célebres e até convidados VIP. O que parecia ser o paraíso na Terra (para alguns) virou o inferno nas Bahamas, as acomodações acabaram por ser tendas destinadas a desalojados em situações de catástrofe e uma das refeições consistia em duas fatias de pão de forma com queijo e uma salada a acompanhar; e, como se não bastasse, os concertos também não aconteceram. Até a água potável para banhos teve de ser abastecida com recurso às águas Evian distribuídas em três camiões e cujas cisternas ficaram bloqueadas na alfândega. “Viver como estrelas de cinema, festejar como estrelas de rock e fornicar como estrelas de pornografia”, assim brindou a equipa ao fracasso inesperado.


Apenas 5 meses seria o tempo que os organizadores teriam para montar o festival de luxo, e é nesse tique-taque que assistimos ao desenrolar dos acontecimentos, como se fosse um filme de terror que se inicia com boas paisagens. A visão que Billy McFarland tinha para o festival era megalómana, o lunático arrastou consigo colegas de trabalho e parceiros de negócios, ficou a dever resmas de dinheiro a colaboradores e investidores, manipulou e roubou milhares de pessoas que compraram bilhetes para algo que não era o que tinha sido prometido e que nem chegou a acontecer.

O empresário mafioso com ares de nerd era descrito como "carismático e confiável" pela sua equipa, o mentiroso compulsivo ao lado da máquina que consigo trabalhava tentava vender o festival aos investidores como uma aposta certa suportada numa estratégia de marketing macabra, tal como garantir a presença de músicos cabeça de cartaz (por exemplo Drake) no festival; quando os bilhetes foram colocados à venda, na verdade, ainda não havia nomes pesados confirmados.

"Fyre" não é um documentário brilhante, o que o torna cativante são os testemunhos das pessoas que trabalharam com McFarland e que tentam desmontar a estrutura de uma mente manipuladora. No fim fica-se a saber que McFarland criou com o diretor criativo MDavid Low uma outra plataforma de booking de talento chamada ICONN -, surreal no mínimo para quem tinha saído da prisão sob fiança e estava a ser investigado pelo FBI. A dado momento, quando se percebe que a compulsão e falta de noção de McFarland embate de frente contra todos os avisos que lhe foram feitos ao longo dos meses, conclui-se que o diagnóstico possível para um sujeito alienado seria o de um louco sem qualquer noção da realidade. Billy McFarland foi sentenciado a seis anos de prisão e nunca mais poderá exercer cargos de direcção numa empresa. Pena que a equipa tenha lavado as mãos e também não tenha sido condenada, porque de certeza que não agiu com inocência. Há espertos que conseguem sais incólumes, por um tempo...

Texto: Priscilla Fontoura
* Texto escrito sem o novo acordo ortográfico