Einstein com “Lina” — o seu adorado Violino A atividade profissional de um professor de música tem a sala de aula como palco de atuação, ond...

Intuito, por Rudesindo Soutelo

Einstein com “Lina” — o seu adorado Violino


A atividade profissional de um professor de música tem a sala de aula como palco de atuação, onde os alunos não são o único público pois toda a sociedade assiste ativamente, avaliando o seu desempenho. Assim como a execução que um artista exibe em público não acontece por acaso, a atuação do professor na sala, diante dos alunos, também é fruto de um rigoroso trabalho prévio. Mesmo aqueles que vão ‘improvisar’ para o palco sabem que é preciso muitas horas, dias, meses e anos de trabalho para que a suposta ‘improvisação’ aconteça. 


Uma aula improvisada, sem qualquer preparação nem guião prévio, pode ser muito estimulante para os alunos se o professor é portador de uma vasta formação e experiência, caso contrário perder-se-á o tempo na sala. Há professores que vão para a sala de aula reproduzir aquilo que vivenciaram durante o período estudantil, como se a sociedade estivesse profundamente adormecida. Há professores possuidores da ‘única’ verdade pedagógica e culpam os alunos do seu insucesso, porque o mundo é que tem de se adaptar a eles. Há professores, mesmo com habilitação profissional para a docência e até com canudos de doutoramento, possuidores de uma supina ignorância social, ética, pedagógica e até musical. Um famoso aforismo de José de Letamendi, reproduzido no pedestal da estátua de Abel Salazar no Instituto Biológico do Porto, reza: O médico que só sabe medicina, nem medicina sabe. Aplicado ao professor de música, que só sabe duma minúscula área da imensidade sonora, resulta ludibrioso. Um professor de música, para além de ser competente na sua área, deve estar integrado na sociedade que atua para acompanhar as evoluções dos alunos e potenciar as suas capacidades, porque ninguém nasce músico, faz-se. Assim, pois, a atividade profissional de um professor de música desenvolve-se maioritariamente fora da sala de aula. Só quando apreendeu a essência, o contexto e o mundo cultural que envolve os alunos da disciplina é que pode ir para o palco representar o seu papel, porque o que acontece na sala de aula é só a minúscula ponta do seu icebergue profissional. 


Para lecionar História da Música, Análise e Técnicas de Composição ou Acústica, disciplinas para as quais fui legalmente habilitado, é preciso vislumbrar e interligar um sem-fim de conhecimentos, e não só musicais. Essa reflexão submergida do icebergue é a que contextualiza a experiência profissional. Edgar Morin afirma, numa entrevista de 2014: “A transdisciplinaridade é o que possibilita, através das disciplinas, a transmissão de uma visão de mundo mais complexa”1 . As bases da reflexão que se expõe nestes artigos são fruto do percurso de uma vida inteira dedicada à música como compositor, ativista, editor, pedagogo, e mais que não necessito enumerar. Esse longo périplo de vida produziu inúmeras reflexões, que algumas vezes foram escritas em prosa e outras transformaram-se em partituras do meu catálogo. Nos últimos anos, fui recuperando da memória, ordenando e fundamentando, muitas dessas reflexões de experiência profissional que são relevantes para o melhor desempenho do ofício de compositor e de professor de música; mas quando trabalhamos com a memória, o passado torna-se uma construção do presente porque, no agora, é impossível saber como seria verbalizado aquele passado, se na altura não ficou documentado. 


No constructo teórico e argumental do passado não se pretende apagar partes da experiência de vida, mas sim de apurar os contributos ao conhecimento atual. “Cada um de nós transporta consigo padrões de pensamento, de sentimentos e de ação potencial, que são resultado de uma aprendizagem contínua. Uma boa parte foi adquirida no decurso da infância, período do desenvolvimento onde somos mais suscetíveis à aprendizagem e à assimilação”2 . A infância é o fundamento de todo o indivíduo, a referência que nos marca, seja para confluir ou divergir, pois temos tendência a observar os outros, nomeadamente os alunos, através do filtro da nossa própria vivência. “Quando certos padrões de pensamento, sentimentos e comportamentos se instalam na mente de cada um, torna-se necessário desaprender, antes de aprender algo diferente, e desaprender é mais difícil do que aprender pela primeira vez”3. Ao longo da minha vida profissional desaprendi quase tanto como aprendi porque, o que ontem era válido, nomeadamente durante o pós-modernismo, hoje pode ser errado ou insignificante. Manter-se profissionalmente ativo exige uma constante atualização crítica dos padrões de pensamento. É a sobrevivência num mundo que “coloca os indivíduos perante a absurda alternativa entre sacrificar a vida ao trabalho e sofrer as consequências de não ter trabalho”4. O que realmente me move tem mais a ver com praticar uma criação musical e uma pedagogia dignas desse nome e isso não é quixotismo retórico, forma parte de uma nova sensibilidade moral que desponta neste neomodernismo sem dominações e que assiste ao surgimento de exigências como a de comer alimentos dignos de tal designação. E com este intuito seguimos em frente.


1 Morin, E.: A educação não pode ignorar a curiosidade das crianças. O Globo.(17 de agosto de 2014). Obtido em 19 de dezembro de 2022, de http://oglobo.globo.com/ sociedade/educacao/a-educacao-nao-pode-ignorar-curiosidade-das-criancas-diz-edgar-morin-13631748 


2 Hofstede, G. (2003). Culturas e Organizações. Compreender a nossa programação mental. Lisboa: Sílabo, 2003, p. 18. 3 Ibid.: p. 18. 4 Jappe, A.: As aventuras da mercadoria para uma nova crítica do valor. Lisboa: Antígona, 2013, p. 12.


Autor do texto: Rudesindo Soutelo (Compositor e Mestre em Educação Artística)