Na República da Irlanda, nos anos 70, há uma criança chamada Sinead Marie Bernadette O'Connor devota à Igreja Católica Romana por influê...

Breaking the Fourth Wall: Nothing Compares (2022)


Na República da Irlanda, nos anos 70, há uma criança chamada Sinead Marie Bernadette O'Connor devota à Igreja Católica Romana por influência directa da família, que viria a ser, para muitos, persona non grata devido à sua insubordinação política. Naquela altura, a Instituição seria o bastião de poder e autoridade, principalmente para as mulheres irlandesas obrigadas a corresponder aos desígnios do clero e do pontificado. Vemos, na actualidade, os crimes cometidos por padres contra crianças, abafados pelo clero ao longo dos anos, a serem - finalmente - levantados e denunciados, muitos deles já prescritos pelo silêncio e conivência de muitas entidades. O'Connor também foi vítima desses abusos: sexual, físico, espiritual e psicológico nas mãos daqueles que deveriam protegê-la. Afirmou que ia para a escola com contusões e lesões faciais sem nunca ninguém ter agido em seu benefício.


No final da década seguinte, aproveitando o poder que o mediatismo lhe dava por causa do gradual sucesso que ia tendo, O'Connor enquanto gota no oceano, no que toca a pessoas contracultura que se destacariam por elevar a música a causas profundas, apontou, através dos seus temas e discursos, para as injustiças cometidas por várias instituições contra a Humanidade. Um desses momentos é registado no tributo a Bob Dylan, aquando da celebração de 30 anos da sua carreira, no estádio Madison Square Garden em 1992. Vemos O'Conner vilipendiada pelo público hostil por ter
 rasgado uma fotografia do Papa João Paulo II ao vivo na TV no Saturday Night Live (SNL). 


Para contextualizar a polémica SNL, O'Connor foi a artista convidada para o programa de TV exibido pela NBC. Apesar de não ter dado quaisquer indícios durante os ensaios para o que ia acontecer na emissão em directo, cantou em versão a cappella o tema "Guerra" de Bob Marley, que aborda vários crimes cometidos contra a Humanidade, mas, neste caso, dirigiu-a e adaptou-a para os cometidos pela Igreja Católica Romana. Rasgou a fotografia que substituía uma criança com fome sentada num canto de uma rua (utilizada nos ensaios) pela cara do Papa, e substituiu a palavra racismo, que faz parte da letra da canção, para abuso de crianças, em protesto contra o abuso contínuo perpetrado pela Igreja. No seu livro de memórias, O'Conner ressalta o silêncio total do público e sobre a ausência de todas as pessoas nos bastidores após a actuação, incluindo o seu agente que se fechou no quarto e desligou o telemóvel por três dias. O'Conner foi logo banida pela NBC. Ao sair do estúdio foi perseguida por dois jovens que lhe atiraram ovos, mas, mesmo assim, manteve-se fiel à sua natureza estóica. 

Mais episódios ao longo da vida da artista, que afirmou que não nasceu para ser artista pop, mas uma vocalista que protesta sobre as injustiças, foram marcadamente controversos. O'Connor também boicotou os Grammys porque sentiu que a cerimónia tinha em vista favorecer o sucesso comercial em vez de honrar o mérito artístico. Também não levantou o Grammy que ganhou porque acredita e defende que a função dos artistas é expressar os sentimentos da espécie humana – sempre falar a verdade e nunca mantê-la escondida, mesmo que o mundo não goste do som da verdade. Em 1990, num concerto em Nova Jérsia, pediu para que o hino nacional dos Estados Unidos da América não fosse tocado pela sua aversão ao nacionalismo, provocando nalguns americanos o boicote ao seu trabalho, a incitação à destruição dos seus álbuns e o boicote de várias estações de rádios. Passados dois anos, cantou alto e bom som "War" de Bob Marley, mesmo que desrespeitada pela audiência sentiu no abraço e no encorajamento do seu colega Kris Kristofferson a força necessária para persistir: 
Até que os direitos humanos básicos
Sejam igualmente garantidos a todos, 
Sem discriminação de raça
Isso é guerra

Figuras como Madonna, Joe Pesci e Frank Sinatra ameaçaram a estabilidade de O'Connor, tendo o cantor afirmado que se O'Connor fosse homem, ter-lhe-ia acertado o pêlo, convidando-a a sair dos EUA. Por sua vez, o SNL fez um sketch para escarnecer a imagem de O'Connor, dizendo que estaria a envelhecer mal. Obviamente, a sua aparição seria a redenção das celebridades, se se colocasse no comodismo do canal e do programa, mas de pé bem firmado a artista contrapôs a intenção do canal.


Ao longo do documentário, "Nothing Compares" (2022), dirigido por Kathryn Ferguson, escutamos a história de O'Connor recontada pela sua voz. É a sua única presença no tempo presente da narrativa. "Nothing Compares" é montado sobretudo com recurso a imagens de arquivo. Ainda pequena, testemunhou o inferno da relação conjugal dos seus pais que culminou num divórcio. Face a esse momento, a vocalista foi demonstrando inadaptação escolar - o que a fez encontrar na música o recanto confessional para exorcizar os traumas existenciais perpetrados pela sua mãe, também vítima de outros traumas. Aquando da gravação do videoclip para o tema "Nothing Compares 2 U", O'Connor penetra o seu olhar na lente da câmara que filma o seu rosto em close-up contra um fundo preto. O momento é transformado em catarse para a libertação de todo o peso emocional que a fez recordar a sua mãe, que morreu quando tinha 16 anos e com quem teve um relacionamento conturbado. A canção escrita por Prince foi alvo de polémicas, uma vez que a sua família negou a O'Connor o direito de utilizar a versão de "Nothing Compares 2 U", no documentário. Anteriormente, também já teria admitido no seu livro de memórias "Rememberings" (2021) que Prince já a teria repreendido em entrevistas e desafiou-a para uma guerra de travesseiros e para a qual conjecturou estratégias agressivas, como colocar algo para infligir dor no travesseiro de O'Connor.


O'Connor, tal como o seu percurso escolar, não foi na onda do culto da imagem que a indústria musical exigia para mulheres que a vendiam a troco de dinheiro e fama. No entanto, a irlandesa, desde que começou a abanar a opinião pública, foi sempre um caso controverso quanto a lutas e maneira de estar na vida. No meio do reboliço da objectificação feminina transmitido pelos canais de música mais mediáticos, como a MTV e VHI, apareceu O'Connor para blasfemar contra o ethos do sucesso, uma transgressão que chocou o mundo da música em 1992. De facto, O'Connor não nasceu para ser estrela pop, mas uma verdadeira artista inconformada com a ruína moral da sociedade e dos vários grupos que a constitui. No entanto, as pessoas que agora concordam solenemente sobre as questões popularizadas por O'Connor, as que comungam de movimentos como #metoo por exemplo, são, provavelmente, aquelas que a ridicularizavam na época. E se O'Connor tivesse uma morte semelhante à de Kurt Cobain, teria sido canonizada há muito.


No desfecho do documentário, encontramos a bela mulher a retomar ao lugar onde começou o seu percurso musical: num palco com o tema "Thank you for Hearing me", lançado em 1994. Desta vez para afirmar o que sempre tentou procurar, um lugar de descanso espiritual onde se pudesse sentir abraçada pela paz de quem a ama realmente, sem qualquer intenção obscura por trás. "Nothing Compares" poderia ter questionado a sua conversão ao islamismo, uma vez que a mulher é muitas vezes reprimida pelos seus representantes embrenhados em vertentes ideológicas. Contudo, fica aqui um exemplo vivo de inconformidade e de pioneirismo contra o mediatismo manipulador dos média e da indústria musical que aparentemente luta a favor de causas, mas cujo papel é meramente instrumentalizador. Pergunto o que seria deste mundo sem pessoas com este nível de consciência... 

Texto: Priscilla Fontoura
Imagens: cartaz e frames do documentário "Nothing Compares" (2022)