Mimesis - o acto de se assemelhar Os pré socráticos acreditavam que quem imitava uma parte do real estaria simplesmente a copia...

Isabel Meyrelles, mulher da velha guarda do surrealismo, é homenageada com a exposição: Como a Sombra a Vida Foge, acompanhada por Cruzeiro Seixas na Fundação Cupertino de Miranda


Mimesis - o acto de se assemelhar
Os pré socráticos acreditavam que quem imitava uma parte do real estaria simplesmente a copiar/imitar uma parte da realidade. Quanto mais aproximados da realidade mais distantes estariam do que poderia ser qualificado como arte. Tanto Platão quanto Aristóteles entendiam que mimesis, termo cunhado por Platão, seria a representação do universo perceptível, abarcado por uma variedade de significados, incluindo a representação, mímica, imitatio, a receptividade, o acto de se assemelhar, o acto de expressão e a apresentação do Eu. Do conceito mimesis surgem variantes que dão lugar a outras teorias e contra argumentos que o rebate. No entanto, há um ismo das expressões artísticas que subverte a realidade, para construir um imaginário muitas vezes "não pensado" recorrendo ao cérebro primitivo. O surrealismo, embora possa parecer que não se influencia na natureza e realidade para criar, tem, na verdade, pontos que se ligam às mesmas, buscam na degeneração e deformidade a resposta para o acto da criação. A natureza não se assenta tampouco se acomoda à crosta, escava até ao inconsciente, às áreas primitivas do cérebro para representar a deturpação original.



Isabel Meyrelles na Fundação Cupertino de Miranda
Na Fundação Cupertino de Miranda, no Centro Português do Surrealismo está patente de 15 de Novembro a 14 de Março de 2020 a exposição "Como a Sombra a Vida Foge", de Isabel Meyrelles. Não é a primeira vez que a Fundação Cupertino de Miranda organiza uma exposição de esculturas da artista que agora apresenta e organiza uma exposição mais completa em homenagem à artista, que este ano completou 90 anos e cujo trabalho contribuiu para o nascimento do surrealismo nacional. Ao todo são 84 obras das 98 reunidas no catálogo, mais de metade são da autora e as restantes da Fundação, de vários coleccionadores particulares e galerias.



Isabel Meyrelles e a velha guarda do surrealismo
Muitos colectivos artísticos nascem no auge da idade da curiosidade, da ingenuidade criativa e da actividade cerebral. A identificação criativa abre uma panóplia de possibilidades cruciais e que dão espaço à inovação. O grupo surrealista surge em Portugal a partir de 1936, em experiências literárias realizadas por António Pedro e alguns amigos.

Isabel Meyrelles, Fritzi para os amigos mais chegados, não se limitou a uma expressão artística, é poeta, tradutora, escultora e criadora de objectos surrealistas e fantásticos. A poesia surrealista distingue-se da escultura; como dizia Mário Cesariny, um dos amigos de Isabel, a poesia vem dos rins e a pintura é a terapia. O surrealista no texto “Para uma Cronologia do Surrealismo Português” (1973) define-a como velha companheira das primeiras acelerações do aparelho respiratório. Com o intuito de homenagear o legado de Mário Cesariny, a Fundação Cupertino de Miranda, entre os dias 28 e 30 de Novembro, terá uma vasta programação com oficinas de expressão plástica, lançamento de livros, declamações de poesia, etc. 

A artista nasceu em Matosinhos a 29 de Abril de 1929, mas cedo, invadida pela curiosidade, mudou-se para Lisboa e depois para Paris em 1950. Em Lisboa conheceu e fez amizade com António Pedro, Alexandre O'Neill, Natália Correia (com quem dirigiu o restaurante O Botequim entre 1971 e 1977) e Cruzeiro Seixas

A exposição patente na Fundação Cupertino de Miranda, em Vila Nova de Famalicão, no Centro Português do Surrealismo, abarca todas as fases de Isabel Meyrelles. A influência surrealista da artista expõe desenhos inspirados não só em desenhos e pinturas de vários artistas surrealistas, mas dá também grande relevância à obra do seu amigo e artista do surrealismo português, por quem se faz acompanhar na inauguração da sua exposição. "Fazia traço contínuo, pegar numa ponta, fazer o desenho magnífico, sem levantar a pena, sem parar, ficava uma coisa perfeita. Não havia nada assim na época.", fala a respeito do trabalho do seu amigo Cruzeiro Seixas; o artista responde, "Eu fiz umas coisinhas, mas se tivesse vivido num país a sério, tinha feito o dobro ou o triplo daquilo que tinha feito do que fiz. Porque é qualquer coisa que está cá dentro, e realmente o país não liga nenhuma a estas coisas, o país está a pensar na bola, no futebol, nos políticos e não sei o que mais. Estamos todos a perder tempo, excepto os amigos que estão aqui, eu considero meus amigos os que estão presentes nestas salas, são uma excepção."; "Em todo o caso esta escultura é muito bonita, se a quiserem por em casa para colocar uma garrafa", satiriza Isabel Meyrelles, fitando uma das suas peças. 


Foi a ditadura do Estado Novo que determinou a ida de Isabel Meyrelles para a capital francesa, onde continuou os estudos de escultura, na Escola Nacional Superior de Belas Artes e na Grande-Chaumière, a par dos estudos literários, que completou na Sorbonne. Aquando do seu tempo em Paris fez amizades com Tristan TzaraPhilippe Soupault e Henri Michaux. Magritte, um dos autodenominados surrealistas (nome cunhado em 1924), e um dos artistas que mais se destacou, expressou o anseio de muitos jovens: criar algo mais real do que a realidade. Guiados e interessados pelo trabalho de Sigmund Freud, o defensor de que os nossos pensamentos em estado de vigília ficam entorpecidos, a criança e o selvagem que existem em nós dominam tudo o resto; essa tese influenciou a construção da arte surrealista, uma vez que os mesmos proclamaram que a arte nunca pode ser produzida pela razão inteiramente desperta; aquela que pode dar-nos a ciência, mas só a não-razão pode dar-nos a arte. Tal teoria, não era da psicanálise, já os clássicos antigos referiam-se à poesia como uma espécie de divina loucura e os autores românticos entraram intencionalmente no mundo da criação sob influência de ópio e outras drogas para descobrirem mares não navegados. 

"Cadavre Trop Exquis 2010", Isabel Meyrelles - Benjamin Marques

A pequena escultura de um casal criatura, meio humano-meio peixe, remete para a estátua do faraó Tutankhamon abraçado pela rainha Anquesenamom que se encontra no templo de Luxor. Uma pequena analogia ao amor entre duas criaturas submersas noutro olhar.

Surrealismo
Assim que a arte começou a não se subjugar às encomendas feitas pelos mecenas endinheirados, à fabricação de máscaras rituais ou à construção de catedrais, uma espécie de jugo foi rompido dando abertura aos artistas para libertarem as ideias, das mais estranhas às mais incoerentes.

Com a finalidade de explorarem o desconhecido, os surrealistas procuraram sondar os processos mentais alterando a hierarquia dos mesmos revertendo-os em detrimento da moral ou do politicamente correcto para dar lugar ao inconsciente. De acordo com Klee, um artista não pode planear o seu trabalho, mas deve deixá-lo crescer. Para quem observa o trabalho de fora poderá sentir-se incomodado e até parecer monstruoso, mas, descartar os preconceitos e deixar a fantasia reinar é a entrada para outro mundo que não deve ser negligenciado. 

A possibilidade de tudo acontecer num sonho, dos significados mudarem de lugar, e a estranha sensação de que pessoas e objectos mudam e se fundem e trocam de lugar passa a existir. O surrealismo, mais do que tudo, dá espaço para a libertação das ideias, sem causar prejuízo seja ele qual for.

Hommage à René Magritte

Isabel Meyrelles: "Como a Sombra a Vida Foge"
Não há limites para Isabel Meyrelles, híbridos fantásticos de pessoas e de animais, poemas inscritos nas paredes, esculturas ampliadas e fundidas em bronze incluem-se na sua obra. Ao longo de toda a exposição, é possível, "reconhecer algumas homenagens, não só a pessoas amigas e familiares, na forma de bustos e altos-relevos, mas também a personalidades que a artista admirava", com as obras como "Hommage à René Magritte", "Homenagem a Alexandre O`Neill" e "Hommage à André Breton - Le Revolver à Cheveux Blancs" (1932).


O desfecho da apresentação da exposição deu-se com a leitura de dois dos seus poemas, incluídos nas obras literárias publicadas em português e francês, Palavras Noturnas (1954) e O Rosto Deserto (1966). 

Ao longo da sua vida, Isabel Meyrelles realizou diversas exposições, quer em Portugal quer em França, e traduziu obras de diversos autores, nomeadamente José Régio e Jorge Amado. As suas obras literárias foram publicadas tanto em português como em francês.


A poesia de Isabel Meyrelles é intensa, subtil, profunda, directa e crua. A autora diz que nem ela própria sabe como e de onde surgem as palavras, continua a ser um mistério, mas, ao surrealismo, embora tudo tenha uma origem e explicação, não é isso que interessa senão criar sem que haja uma grande explicação para isso. Porque para o surrealismo tudo é devido.

Texto & Imagens: Priscilla Fontoura
Exposição: "Como a Sombra a Vida Foge"
Fontes: A Viagem dos Argonautas, A História da Arte (Gombrich E.H.)
Artista: Isabel Meyrelles
Local: Fundação Cupertino de Miranda, no Centro Português do Surrealismo, Vila Nova de
Famalicão
Data: 15 de Novembro, 2019
Exposição gratuita