Mimesis - o acto de se assemelhar Os pré-socráticos acreditavam que quem imitava uma parte do real estaria simplesmente a copiar...

Isabel Meyrelles, mulher da velha guarda do surrealismo, homenageada com a exposição Como a Sombra a Vida Foge, acompanhada por Cruzeiro Seixas, na Fundação Cupertino de Miranda


Mimesis - o acto de se assemelhar

Os pré-socráticos acreditavam que quem imitava uma parte do real estaria simplesmente a copiar uma porção da realidade. Quanto mais próxima da realidade fosse essa reprodução, mais distante estaria daquilo que poderia ser considerado arte.

Platão e Aristóteles viam a mimesis — termo cunhado por Platão — como a representação do universo perceptível. Este conceito abrangia uma variedade de significados: representação, mímica, imitatio, receptividade, o acto de se assemelhar, expressão e apresentação do Eu. A partir de mimesis surgem vertentes que originam novas teorias e contra-argumentos.

No entanto, há correntes artísticas que subvertem a realidade para construir um imaginário “não pensado”, recorrendo a áreas do cérebro mais primitivas. O surrealismo, embora aparentemente desligado da realidade, é profundamente influenciado por ela — encontra na deformação, na transgressão e na degeneração respostas para o acto criativo. A natureza, que nunca se acomoda, escava até ao inconsciente para representar a sua própria deturpação original.



Isabel Meyrelles na Fundação Cupertino de Miranda
De 15 de novembro de 2019 a 14 de março de 2020, esteve patente na Fundação Cupertino de Miranda, no Centro Português do Surrealismo, a exposição Como a Sombra a Vida Foge, dedicada à artista Isabel Meyrelles. Não sendo a primeira exposição organizada pela fundação sobre a escultora e poeta, esta apresenta-se como a mais abrangente, numa homenagem aos seus 90 anos e à sua contribuição decisiva para o surrealismo nacional. Das 98 obras reunidas no catálogo, 84 estiveram expostas — mais de metade são da artista, as restantes pertencem à fundação, colecionadores privados e galerias.



Isabel Meyrelles e a velha guarda do surrealismo
Muitos coletivos artísticos surgem no auge da curiosidade e da criatividade. O grupo surrealista surge em Portugal a partir de 1936 em experiências literárias, realizadas por António Pedro e alguns amigos.

Isabel Meyrelles, também conhecida como Fritzi, não se limitou a uma só forma de expressão: é escultora, poeta, tradutora e criadora de objetos surrealistas. A sua poesia diferencia-se da escultura; como dizia Mário Cesariny, seu amigo próximo, “a poesia vem dos rins e a pintura é a terapia”. Em Para uma Cronologia do Surrealismo Português (1973), Cesariny refere-se à poesia como “velha companheira das primeiras acelerações do aparelho respiratório”. Entre 28 e 30 de novembro, a Fundação Cupertino de Miranda dedicou uma programação especial em sua homenagem, com com oficinas de expressão plástica, lançamento de livros, declamações de poesia, etc. 

Nascida em Matosinhos a 29 de abril de 1929, Meyrelles mudou-se ainda jovem para Lisboa, onde privou com António Pedro, Alexandre O’Neill, Natália Correia (com quem dirigiu o restaurante O Botequim entre 1971 e 1977) Cruzeiro SeixasMais tarde, estabeleceu-se em Paris (1950), onde estudou escultura na Escola Nacional Superior de Belas Artes e na Grande-Chaumière, e literatura na Sorbonne. Conviveu com figuras como Tristan Tzara, Philippe Soupault e Henri Michaux.

A exposição em Famalicão

A exposição em Vila Nova de Famalicão cobre todas as fases da sua obra. Entre desenhos e esculturas, revela também a influência de artistas surrealistas e do seu amigo Cruzeiro Seixas. Sobre ele, Meyrelles diz:

“Fazia traço contínuo, pegava numa ponta e desenhava sem parar, sem levantar a pena. Ficava perfeito. Não havia nada assim na época.”

Seixas, por sua vez, responde:

“Eu fiz umas coisinhas, mas se tivesse vivido num país a sério, tinha feito o dobro. O país está a pensar na bola, nos políticos... Estamos todos a perder tempo. Excepto os que estão aqui, que considero meus amigos.”

Meyrelles, sempre sarcástica, aponta para uma das suas esculturas:

“Esta é muito bonita. Se a quiserem em casa para pôr uma garrafa…”

Foi a ditadura do Estado Novo que motivou a sua ida para Paris, onde desenvolveu a sua obra plástica e literária. Uma das esculturas em exposição representa um casal híbrido — metade humano, metade peixe — evocando a estátua de Tutankhamon abraçado pela rainha Anquesenamom no templo de Luxor. Um outro olhar sobre o amor.



Foi a ditadura do Estado Novo que levou Isabel Meyrelles a partir para Paris, onde prosseguiu os estudos de escultura na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts e na Grande Chaumière, ao mesmo tempo que completava estudos literários na Sorbonne. Durante a sua permanência na capital francesa, estabeleceu relações com figuras centrais do surrealismo europeu, como Tristan Tzara, Philippe Soupault e Henri Michaux.

Magritte, um dos mais reconhecidos entre os autodenominados surrealistas — termo cunhado em 1924 — sintetizou o anseio de muitos jovens da época: criar algo mais real do que a própria realidade. Influenciados pelas ideias de Sigmund Freud, que defendia que os pensamentos em estado de vigília permanecem entorpecidos e que o “selvagem” e a “criança” dentro de nós comandam o restante, os surrealistas afirmavam que a arte não pode surgir da razão plenamente desperta. À razão pertence a ciência; à não-razão, pertence a arte.

Este pensamento não é exclusivo da psicanálise. Já os clássicos antigos falavam da poesia como uma forma de loucura divina, e os autores românticos mergulhavam intencionalmente em estados alterados de consciência — com ópio e outras substâncias — para explorar territórios criativos inexplorados.


"Cadavre Trop Exquis 2010", Isabel Meyrelles - Benjamin Marques

Um exemplo simbólico dessa fusão entre inconsciente e criação é a pequena escultura de Isabel Meyrelles representando um casal híbrido, meio humano, meio peixe. A peça remete para a imagem do faraó Tutankhamon abraçado pela rainha Anquesenamom, no templo de Luxor — uma analogia poética ao amor entre duas criaturas submersas num outro olhar.

Surrealismo
Quando a arte deixou de se subjugar às encomendas de mecenas endinheirados, à produção de máscaras rituais ou à construção de templos, rompeu-se um jugo. Essa libertação abriu espaço para que os artistas explorassem novas ideias — por mais estranhas, incoerentes ou oníricas que fossem.

Com o objectivo de sondar o desconhecido, os surrealistas inverteram a hierarquia dos processos mentais, rejeitando a moral convencional e o politicamente correto para darem lugar ao inconsciente. Para Paul Klee, por exemplo, o artista não deve planear a sua obra, mas deixar que ela cresça por si. O que pode parecer desconcertante ou até monstruoso para quem observa de fora é, para o surrealismo, o caminho de entrada num novo mundo — um mundo que não deve ser ignorado.

É nesse universo que tudo pode acontecer como num sonho: significados trocam de lugar, objectos e pessoas fundem-se e transformam-se. O surrealismo oferece, acima de tudo, um espaço de libertação radical da imaginação — sem medo, sem culpa e sem prejuízo.


Hommage à René Magritte

Isabel Meyrelles: "Como a Sombra a Vida Foge"
Na exposição, encontram-se híbridos fantásticos, poemas nas paredes, esculturas em bronze, bustos e altos-relevos em homenagem a amigos e figuras de referência: Hommage à René MagritteHomenagem a Alexandre O’Neill, e Hommage à André Breton – Le Revolver à Cheveux Blancs (1932).


O encerramento da estreia da exposição incluiu a leitura de dois dos seus poemas, retirados dos livros Palavras Noturnas (1954) e O Rosto Deserto (1966), publicados em português e francês.

Ao longo da sua vida, Meyrelles traduziu autores como José Régio e Jorge Amado, e apresentou o seu trabalho em várias exposições em Portugal e França.



A poesia de Isabel Meyrelles é intensa, directa, crua e subtil. A autora confessa que nem ela própria sabe como nascem as palavras, de onde vêm, ou por que se alinham como se alinhassem. Permanecem um mistério. Mas no surrealismo — ainda que tudo tenha uma origem e uma razão de ser — isso pouco importa. O que interessa é criar, mesmo sem saber porquê. Criar sem precisar de justificar a criação. Para o surrealismo, tudo é devido.


Texto & Imagens: Priscilla Fontoura
Exposição: "Como a Sombra a Vida Foge"
Fontes: A Viagem dos Argonautas, A História da Arte (Gombrich E.H.)
Artista: Isabel Meyrelles
Local: Fundação Cupertino de Miranda, no Centro Português do Surrealismo, Vila Nova de
Famalicão
Data: 15 de Novembro, 2019
Exposição gratuita