
Os pré-socráticos acreditavam que quem imitava uma parte do real estaria simplesmente a copiar uma porção da realidade. Quanto mais próxima da realidade fosse essa reprodução, mais distante estaria daquilo que poderia ser considerado arte.
Platão e Aristóteles viam a mimesis — termo cunhado por Platão — como a representação do universo perceptível. Este conceito abrangia uma variedade de significados: representação, mímica, imitatio, receptividade, o acto de se assemelhar, expressão e apresentação do Eu. A partir de mimesis surgem vertentes que originam novas teorias e contra-argumentos.
No entanto, há correntes artísticas que subvertem a realidade para construir um imaginário “não pensado”, recorrendo a áreas do cérebro mais primitivas. O surrealismo, embora aparentemente desligado da realidade, é profundamente influenciado por ela — encontra na deformação, na transgressão e na degeneração respostas para o acto criativo. A natureza, que nunca se acomoda, escava até ao inconsciente para representar a sua própria deturpação original.
Isabel Meyrelles na Fundação Cupertino de Miranda

A exposição em Vila Nova de Famalicão cobre todas as fases da sua obra. Entre desenhos e esculturas, revela também a influência de artistas surrealistas e do seu amigo Cruzeiro Seixas. Sobre ele, Meyrelles diz:
“Fazia traço contínuo, pegava numa ponta e desenhava sem parar, sem levantar a pena. Ficava perfeito. Não havia nada assim na época.”
Seixas, por sua vez, responde:
“Eu fiz umas coisinhas, mas se tivesse vivido num país a sério, tinha feito o dobro. O país está a pensar na bola, nos políticos... Estamos todos a perder tempo. Excepto os que estão aqui, que considero meus amigos.”
Meyrelles, sempre sarcástica, aponta para uma das suas esculturas:
“Esta é muito bonita. Se a quiserem em casa para pôr uma garrafa…”
Foi a ditadura do Estado Novo que motivou a sua ida para Paris, onde desenvolveu a sua obra plástica e literária. Uma das esculturas em exposição representa um casal híbrido — metade humano, metade peixe — evocando a estátua de Tutankhamon abraçado pela rainha Anquesenamom no templo de Luxor. Um outro olhar sobre o amor.
Foi a ditadura do Estado Novo que levou Isabel Meyrelles a partir para Paris, onde prosseguiu os estudos de escultura na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts e na Grande Chaumière, ao mesmo tempo que completava estudos literários na Sorbonne. Durante a sua permanência na capital francesa, estabeleceu relações com figuras centrais do surrealismo europeu, como Tristan Tzara, Philippe Soupault e Henri Michaux.
Magritte, um dos mais reconhecidos entre os autodenominados surrealistas — termo cunhado em 1924 — sintetizou o anseio de muitos jovens da época: criar algo mais real do que a própria realidade. Influenciados pelas ideias de Sigmund Freud, que defendia que os pensamentos em estado de vigília permanecem entorpecidos e que o “selvagem” e a “criança” dentro de nós comandam o restante, os surrealistas afirmavam que a arte não pode surgir da razão plenamente desperta. À razão pertence a ciência; à não-razão, pertence a arte.
Este pensamento não é exclusivo da psicanálise. Já os clássicos antigos falavam da poesia como uma forma de loucura divina, e os autores românticos mergulhavam intencionalmente em estados alterados de consciência — com ópio e outras substâncias — para explorar territórios criativos inexplorados.
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"Cadavre Trop Exquis 2010", Isabel Meyrelles - Benjamin Marques |
Um exemplo simbólico dessa fusão entre inconsciente e criação é a pequena escultura de Isabel Meyrelles representando um casal híbrido, meio humano, meio peixe. A peça remete para a imagem do faraó Tutankhamon abraçado pela rainha Anquesenamom, no templo de Luxor — uma analogia poética ao amor entre duas criaturas submersas num outro olhar.
Surrealismo
Com o objectivo de sondar o desconhecido, os surrealistas inverteram a hierarquia dos processos mentais, rejeitando a moral convencional e o politicamente correto para darem lugar ao inconsciente. Para Paul Klee, por exemplo, o artista não deve planear a sua obra, mas deixar que ela cresça por si. O que pode parecer desconcertante ou até monstruoso para quem observa de fora é, para o surrealismo, o caminho de entrada num novo mundo — um mundo que não deve ser ignorado.
É nesse universo que tudo pode acontecer como num sonho: significados trocam de lugar, objectos e pessoas fundem-se e transformam-se. O surrealismo oferece, acima de tudo, um espaço de libertação radical da imaginação — sem medo, sem culpa e sem prejuízo.
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Hommage à René Magritte |
O encerramento da estreia da exposição incluiu a leitura de dois dos seus poemas, retirados dos livros Palavras Noturnas (1954) e O Rosto Deserto (1966), publicados em português e francês.
Ao longo da sua vida, Meyrelles traduziu autores como José Régio e Jorge Amado, e apresentou o seu trabalho em várias exposições em Portugal e França.

A poesia de Isabel Meyrelles é intensa, directa, crua e subtil. A autora confessa que nem ela própria sabe como nascem as palavras, de onde vêm, ou por que se alinham como se alinhassem. Permanecem um mistério. Mas no surrealismo — ainda que tudo tenha uma origem e uma razão de ser — isso pouco importa. O que interessa é criar, mesmo sem saber porquê. Criar sem precisar de justificar a criação. Para o surrealismo, tudo é devido.
Exposição: "Como a Sombra a Vida Foge"
Fontes: A Viagem dos Argonautas, A História da Arte (Gombrich E.H.)
Artista: Isabel Meyrelles
Local: Fundação Cupertino de Miranda, no Centro Português do Surrealismo, Vila Nova de
Famalicão
Data: 15 de Novembro, 2019
Exposição gratuita