A ilustração científica começa pela época do Renascimento a ser uma expressão prolífica entre os biólogos, que nas suas expedições tinham co...

Zé Burnay, o mago da tinta e da caneta, lança Andrómeda ou O Longo Caminho para Casa - uma edição luxuosa com banda-sonora ambiental, criada pelo autor, que propicia uma experiência de leitura mais imersiva

A ilustração científica começa pela época do Renascimento a ser uma expressão prolífica entre os biólogos, que nas suas expedições tinham como objectivo representar mimeticamente o que observavam, ou por artistas que procuravam no exercício da precisão o perfeccionismo para as suas imagens hiper-realistas. Não apenas submergido numa espécie de ilustração científica, encontramos o trabalho de Zé Burnay, como também noutras expressões: ilustração, escrita e música. Faz lembrar o colectivo artístico Malleus que se dedica ao mundo criativo alternativo sem se dissociar da música. Em 2010, começou a publicar o seu trabalho e a dedicar mais tempo a desenvolver ilustrações. Estudou design gráfico na Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha e tem participado em várias fanzines e antologias de BD portuguesas, sendo que Andrómeda é o trabalho com mais representatividade. As suas principais inspirações são os comics de Mike Mignola e Jean Giraud, música e cinema. Lançou uma campanha indiegogo (financiamento colaborativo), que felizmente teve grande apoio, para lançar a edição luxuosa em português Andrómeda, ou o Longo Caminho para Casa que inclui também um caderno de extras, esboços, originalmente publicados na versão inglesa, e uma série de ilustrações de artistas convidados, entre as quais várias inéditas de artistas portugueses. Entre os artistas convidados encontram-se Mike Mignola, fã de longa data da obra de Zé Burnay, mas também ilustrações de Artyom Trakhanov, Matt Smith, Aaron Conley, entre outros, e dos portugueses André Caetano, André Pereira, Jorge Coelho e Mosi. Esta edição é tão especial que para proporcionar uma experiência de leitura mais imersiva, Zé Burnay criou também uma banda-sonora de música ambiente que acompanha o livro.

Andromeda, por Zé Burnay

Olá Zé, como passaste este final do ano? 
Olá! Passei em casa, pareceu-me a única coisa sensata a fazer em 2020.

Como correu 2020 em termos de produtividade criativa?
No geral, penso que fui bastante produtivo este ano, não necessariamente por causa da pandemia porque com ou sem ela, a oportunidade de arranjar distracções é constante ahah. Felizmente tive muito trabalho este ano, possivelmente o meu melhor desde que comecei o meu percurso enquanto freelancer.

O teu trabalho de ilustração é muito marcado pelo detalhe, quanto tempo passas à volta de uma ilustração? Não sofres com problemas de articulações?
Depende muito da ilustração. Tanto pode ser 2-3 dias, como duas semanas. Diria que a minha média será uma semana. 
Problemas de articulações, por enquanto, não os tenho. Faço figas para que nunca apareçam! 

Andrómeda ou O Longo Caminho para Casa, por Zé Burnay
Andrómeda ou O Longo Caminho para Casa, por Zé Burnay

Hunters in the Snow quase que poderia ser uma apologia à anti-caça e o antagonismo do que aconteceu há pouco na Quinta da Torre Bela, na Azambuja. Achas que de alguma forma o teu trabalho poderia ser utilizado para ser interpretado fora dos alicerces somente artísticos e fundir-se noutros mundos, talvez para invocar uma consciencialização política?
Sim! Não costumo tentar criar imagens explicitamente políticas, mas a conservação ambiental, a relação entre o homem e a natureza e,  no geral, a "Vida e Morte" são temas muito importantes e pelos quais me interesso. De uma maneira ou de outra, penso que estão sempre presentes em tudo o que eu faço.

Hunters in the Snow remete para a capa do álbum de Agalloch, The Mantle; sabemos que tens ligação à música, mas poderias falar com mais detalhe como essa relação se vai assumindo para depois ser transposta à criação?
De todas as artes, a música é a minha maior fonte de inspiração. Talvez por ser a forma de arte mais distante do que eu faço enquanto artista visual. A combinação entre letras, conteúdo sónico e os títulos de músicas sempre foram para mim uma enorme fonte de ideias. Além disso, tenho uma grande paixão por capas de álbuns desde miúdo. Lembro-me especificamente de estar em casa de uns tios com uns 6 ou 7 anos e ver no quarto do meu primo mais velho a capa do álbum "Americana" dos Offspring e de ter ficado completamente fascinado por ela. É uma imagem que ficou gravada no meu cérebro desde então. Como hobby (mas também para as bandas-sonoras do Andromeda), gosto muito de fazer música ambiente/drone. Regularmente, quando estou a trabalhar intensamente numa ilustração, gosto de fazer uma pausa do trabalho e gravar um ou outro loop de guitarra/synth. Não só me relaxa, como me dá imenso gozo, talvez por ser uma forma de expressão artística pela qual não tenho ambições de sucesso ou carreira.

Avanço: Our Mother the Mountain 1, por Zé Burnay
Avanço: Our Mother the Mountain 2, por Zé Burnay

A temática do mundo animal selvagem é muitas vezes abordada nos teus trabalhos, qual a tua relação com esse ambiente?
Sou de Sintra e, como tal, os espaços verdes sempre fizeram parte da minha vida. Há uma certa atmosfera na serra de Sintra que sempre me fascinou e despertou desde cedo um interesse e curiosidade pela natureza. Gosto de utilizar a fauna/flora como elemento simbólico no meu trabalho para representar sentimentos/ ideias humanas. Além disso, desenhar animais, simplesmente, dá-me gozo e é sempre um desafio interessante. 

Mater, temática relacionada a Andrómeda: caneta e tinta, por Zé Burnay. 2016

Denoto influência do teu trabalho com o do artista Richey Beckett. Quais são as referências para ti tanto na ilustração quanto na música?
(Gosto do trabalho de Richey Beckett mas não o considero uma influência.) No mundo da banda desenhada as minhas maiores referências são Mike Mignola e Jean "Moebius" Giraud. Jeremy Bastian e o Aaron Horkey são também grandes fontes de inspiração. Na Música, talvez a minha maior influencia seja o Dylan Carlson e a sua banda Earth. Muito do meu trabalho é feito a ouvir a música dele e diria que é uma das maiores inspirações para o Andromeda. 

Como tem sido recebida a versão deluxe de Andromeda? 
Muito bem, felizmente. Superou as minhas expectativas já na altura em que fiz a campanha de crowdfunding e até agora não dá sinais de estagnar. Dito isto, Andromeda é uma BD de nicho dentro de uma cultura que por si só já é nicho. Não tenho nenhumas expectativa de ver o Andromeda tornar-se num best seller ahah. É principalmente um projecto de satisfação pessoal e, por isso, enquanto continuar a dar-me gozo e não me der prejuízo, não tenho motivos para parar. 

Gostarias alguma vez de ver Andromeda adaptado para cinema? A banda-sonora está criada, a história, o imaginário também, se pudesses escolher qualquer nome do cinema quem escolherias para o fazer?
Não é algo que tenha como objetivo na minha carreira e honestamente não me parece realístico. Dito isto, dificilmente rejeitaria a oportunidade. Adorava a experiência de poder acompanhar uma produção para não falar de todos os outros benefícios. Vi recentemente o filme Jauja do realizador Argentino Lisandro Alonso e acho que ele faria algo espetacular com o Andromeda. 

Imagem: blogue Juvebêde, no festival de BD de Beja no início de 2020 - na imagem Zé Burnay

O ambiente sonoro transporta para uma espécie de travessia dos magos pelo deserto, sujeitos a qualquer perigo, mas essa travessia inspira também a uma caminhada também existencial e mística, onde te situas a este respeito?
Tenho muito interesse por misticismo, folclore e mitologia principalmente como veículo para retratar de alguma forma as grandes questões: a vida, a morte e o eterno mistério da nossa existência. Não há nada que me fascine mais do que essa questão, o facto de estarmos aqui. Tenho uma visão racional e científica do mundo (não acredito em deuses pessoais, fantasmas, espíritos etc.) e aceito que a resposta a essa pergunta seja simplesmente "porque sim" e que não tenhamos qualquer missão a cumprir enquanto seres vivos. Mas não consigo não estar insatisfeito com essa resposta. Ou com a ideia de não haver resposta. Mais que tudo é o sentimento de profundo mistério face a um universo do meu ponto de vista infinito e mais antigo que alguma vez conseguirei compreender que me atrai. 
Quando era miúdo lembro-me de algumas vezes fechar os olhos e tentar visualizar o big bang e de pensar que era impossível porque não haveria nada/ninguém para visualizar esse momento, um bocado como a frase "If a tree falls in a forest and no one is around to hear it, does it make a sound?". Por mais piroso que pareça, às vezes essa linha de pensamento leva-me, por pequenos instantes, a sensação de estar completamente desassociado de mim próprio por e por falta de outras palavras em "comunhão" com o universo. 


Temos uma rubrica intitulada Bagagem, poderias referir as tuas influências para 5 livros, 5 discos, 5 filmes/animações/séries, 5 comics?

Livros:
Blood Meridian, Cormac McCarthy 
Butcher's Crossing, John Edward Williams
My First Summer in the Sierra, John Muir
Folklore, Myths, and Legends of Britain, Russell Ash
Ghost and Horror Stories of Ambrose Bierce, Ambrose Bierce

Discos: 
The Bees Made Honey in the Lion's Skull, Earth
The Morning Star, Daniel Bachman
Grapes from the Estate, Oren Ambarchi
Sky Burial, Inter Arma
Seasonal Hire, Black twig pickers and Steve Gunn

Filmes/Animações/séries:
Stalker, Andrei Tarkovsky
A Field in England, Ben Wheatley
The Sopranos, criado por David Chase
Fehérlófia, Marcell Jankovics
Detectorists, criado por Mackenzie Crook

Comics:
Hellboy in Hell, Mike Mignola
Blueberry, Jean Giraud e Jean-Michel Charlier 
Arzach, Moebius
Cursed Pirate Girl, Jeremy Bastian
The Marquis, Guy Davis


Intro e entrevista: Priscilla Fontoura
Entrevistado: Zé Burnay

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