Cartaz de Shtisel Tentar perceber uma realidade diferente da nossa pode ser, para alguns, um exercício difícil, caso contrário o mundo seria...

Numa Relação Séria com a Netflix: Shtisel

Cartaz de Shtisel

Tentar perceber uma realidade diferente da nossa pode ser, para alguns, um exercício difícil, caso contrário o mundo seria um lugar mais empático. Quanto mais fechados em nós mesmos, acomodados à simples rotina e sujeitos a uma educação redutora, mais difícil fica sair dos limites de uma realidade limítrofe. É necessário respeitar a diferença. Não saber entrar ou não saber colocar-se nos sapatos do outro gera preconceitos e pontos de vista muitas vezes injustos que em vez de aproximar povos, só os afasta e distancia.

O judaísmo, enquanto cultura e religião, no decorrer das épocas, dos sincretismos e influências que foi adquirindo - por força das perseguições de outros impérios e conquistas - tem na sua génese a pretensão da conservação dos valores e conceitos que definem a sua essência. O judaísmo tem, semelhantemente, como base, manter a raiz original da sua origem ainda que, no que à religião diz respeito, esteja em crescimento um remanescente com vontade de renovar-se e aceitar o que se considera como pensamento pós-moderno, sem conduzir as comunidades à segregação em pequenos bairros ou manter as realidades fechadas; pelo contrário, aumenta a vontade de ter como perspectiva fazer das sinagogas templos para o encontro entre judeus e não judeus com aspirações reformadoras e progressistas.

Essa ramificação defende a introdução de novos conceitos das práticas judaicas, convergindo a sua realidade ao mundo secular - uma vez que o judaísmo reformista não separa judeu de "goy | goyim" (se é que essa palavra é permitida na visão reformista), o objectivo premente tem como ponto principal a espiritualização de toda a Humanidade, independente de crenças, nações ou etnias - o respeito, a autonomia individual, a liberdade no uso das vestimentas e a igualdade de género são alíneas sujeitas à visão mais progressista.


A série Shtisel, que já acompanhava há mais tempo que Unorthodox, tem como eixo uma família haredi que vive num bairro ultra-ortodoxo de Jerusalém. Em 2021, a terceira temporada veio acalentar os seguidores da série que mostra, pelo menos, três gerações diferentes que lidam com a vida fechada de um grupo segregado à sua própria instituição e conserva o legado dos seus ancestrais patriarcas como conduta para as suas realidades. Os rapazes sujeitam-se aos estudos nas yeshivas da Torá e do Talmude, e as jovens mulheres têm como objectivo casar-se segundo a lei e tradição judaicas. No entanto, o protagonista Akiva “Kive” Shtisel, apesar de ter crescido nesta tradição, mostra-se como peça fora do baralho, é um artista sonhador cheio de bondade e inocência. Ao contrário do enredo de "Unorthodox", em que Haas 'Esty está determinada a escapar do que é retratado como uma comunidade opressora, este não é o foco de "Shtisel". Em vez disso, as personagens estão profundamente enraizadas e comprometidas em ser e pertencer à comunidade que amam - mantendo inclusivamente o Iídiche* como vernáculo principal. Além do mais, a série está carregada de doses de humor, tão característico da comunidade judaica. Nunca pararam, por exemplo, para pensar porque é que os judeus têm Cinofobia? Aqui têm a resposta

O drama Shitsel, tal como Unorthodox, permite criar empatia por aquelas personagens que lidam, tal como qualquer pessoa, seja na vida secular ou religiosa, com problemas da vida real, personagens essas que vivenciam o peso que a tradição passada carrega, são problemas sérios que podem criar constrangimentos e frustrações, tal como a infertilidade que desde os primórdios da cultura judaica é encarada como maldição - veja-se o patriarca Abraão cuja obediência foi quebrada seguindo a vontade da sua mulher, até então infértil, Sarai tendo fecundado com Agar. No judaísmo religioso esta questão é um problema que causa vergonha, uma vez que a descendência é muito importante para a cultura judaica.

A série criada por Ori Elon e Yenonatan Indursky, ambos educados em famílias de origens religiosas, o primeiro ortodoxo moderno e o segundo ultraortodoxo respectivamente. Os criadores nunca pensaram conseguir continuar a primeira temporada que foi conquistando vários fãs. A série tem como elenco Doval'e Glickman, Michael Aloni, Neta Riskin e a talentosa Shira Haas, também presente em Unorthodox.


As comunidades judaicas de várias origens e cujas divisões se dão na época moderna (asquenazes, sefarditas, mihzarim, etc) continuam a ser um factor de estudo para quem tem interesse e curiosidade em perceber a miríade de influências tão ampla nestas culturas pertencentes ao grupo mãe que é o judaísmo, conquanto tão particular nas subdivisões que fez muito motivadas pelas diásporas. 

No contexto desta série são os Haredi o subgrupo exposto da comunidade judaica, a etimologia de origem hebraica diz respeito a temente ou temeroso e refere-se ao judeu praticante do judaísmo mais convencional, o ultraortodoxo - que é resistente à mudança das leis judaicas. Entre os demais conflitos, um que se mantém entre as comunidades judaicas e os seculares que trabalham para sustentar estes pequenos grupos religiosos cujo tempo é passado maioritariamente nas yeshivas, reside precisamente nessa dinâmica laboral e no pagamento de impostos, em detrimento dos seculares contribuintes. No entanto, encontram-se também correntes contra a existência do Estado de Israel e contra o sionismo, ainda que muito pequena, os Neturei Karta, que confiam nas promessas das escrituras sagradas e só vislumbram o estado de Israel com a vinda do Messias.

Contudo, Shitsel não trata de conflitos políticos e sociais. A série lida muito com as próprias personagens e os mundos em que vivem, acima de tudo, as histórias são histórias muito humanas. Um dado muito relevante é que a série tenta ser o mais específica possível a representar a língua e a comida dos traços da comunidade, mas não aborda os conflitos usuais de que se ouve falar; talvez seja por isso que as pessoas revêem-se naquelas personagens, incluindo as que não são judias. 

Texto: Priscilla Fontoura


* O Iídiche é a língua dos judeus asquenazes desde há nove ou dez séculos, nascido de uma combinação única de dialectos falados nas cidades da Alemanha medieval, integrou, modificando-os, vários elementos linguísticos importados (hebraico, aramaico, romance, eslavo) dando provas de um notável génio inventivo que sempre lhe permitiu renovar-se do interior. Inicialmente chamado loshn Ashkenaz («língua da Alemanha») ou taitsh (Deutsch), seguiu os movimentos migratórios das populações judaicas muito para além das terras germanófobas que o viram nascer. No contacto com línguas e culturas, multiplicou os dialectos, os vocabulários, as formas gramaticais; mas apesar da sua infinita diversidade, ele será o traço de união e o principal distintivo de todas as comunidades asquenazes em todo o mundo, e ao mesmo tempo um instrumento cultural eficaz. - em a História Universal dos Judeus, sob a direcção de Élie Barnavi, 1992.